Um conto de Sergio Ballouk
Sergio Ballouk nasceu em São Paulo e foi criado na Vila Guilherme, nos bons tempos das lagoas e campos de várzea. Formado em Publicidade e Propaganda pela Cásper Líbero com pós-graduação em Gestão Pública pela UMC. É autor dos livros Enquanto o Tambor não Chama (poemas) e Casa de Portugal (contos), lançado em 2016. Tem textos publicados nas antologias Cadernos Negros, Sarau da Brasa, Pretumel, entre outras. E, dizem as boas línguas, também visto com frequência no sarau Elo da Corrente, lugar de poesia e amigos. Face: (https://www.facebook.com/sergio.ballouk.7). Insta: sergioballouk.
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SENHOR DA COLINA
E a promessa foi lançada. Dona Ditinha tasca reforço ao ouvido de Wilson:
— Wir, Escuta o que estou te dizendo. Você vai melhorar. E vai mesmo. E quando sair da cama, andar, pular, pensar em noivação de novo, não se esquece de agradecer ao Senhor da Colina. É ele que me guia— o moribundo ouvia. Só ouvia. Entubado, ligado a intermináveis sacos de soros, agulhas, remédios, só ouvia.
Na beirada da cama rezou um mundaréu de gente. Alguns pediam saúde para Wilson, ânimo para superar a doença, voltar para o time, para as noitadas. Muitos viam as leis de causa e efeito e, conhecendo o passado do rapaz, davam o ente querido por quase morto. Acreditavam fielmente que dessa não passaria o infeliz, que tanto aprontou nas costas de Sálvia, a noiva. Mesmo assim, rezavam junto à moça. Outros visitantes dos doentes das camas ao lado, sob voz abafada, diziam que se ele escapasse dessa, que era bem improvável, poderia ficar com sequelas irreparáveis. Os médicos enrolavam sem confirmar ao certo o diagnóstico, mas uma enfermeira-chefe, frequentadora de uma casa de Axé das bandas do Tremembé, dava a entender que era coisa de “ancestralidade mal resolvida” ou coisa parecida. E foi assim que apareceu a Vó Ditinha pra resolver mais essa.
A senhorinha, atendendo ao pedido de Sálvia, chega ao hospital e começa a espalhar cheiros de plantas onde passa, carregando sua sacola de nylon vermelha, como que vinda de banca de ervas ou quintal do barracão, solo sagrado e pronto socorro espiritual.
— Você vai beber esse preparado, três golinhos por dia, só três golinhos — e orientava Sálvia que deixasse a garrafada sempre do lado esquerdo da cama. Quem via aquela coleção de ervas meticulosamente engarrafada não ousava perguntar o que tinha dentro.
Herdeira da ciência do Quilombo do Jabaquara, sempre seguiu as trilhas das ervas, o tempo da maceração, a filosofia das flores. Certamente resolveria mais essa!
Isso foi depois que o cansaço bateu no povaréu e sozinha brigava com a dona morte. Segurava com as poucas forças que circulava em seu frágil corpo a mão do “quase finado”.
E, como parte do ritual, reforçava pedido ao Wilson, que saindo do hospital e pudesse falar sem embaraço, deveria agradecer ao Senhor da Colina. A senhorinha sabia que melhor que fosse a pessoa “depois que a barriga está cheia, goiaba tem bicho”, costumava repetir sabiamente. Wir, corruptela entoada pela senhorinha, aceitava com piscadela vagarosa, pouco mais rápida que o gotejar do soro. Entendia mais ou menos o trato, mas, fazer o que, aceitava a promessa. A velha compareceu todos os dias de visita, sempre perguntando sobre Wir e a garrafada. Acomodada num sofá, rezava, se é que alguém podia ouvir alguma coisa, fruto de seus minúsculos óculos e mãos enrugadas a folhear um livro. Outros diziam que ficava era declamando poesias. Que falava sozinha. Sabe-se que daquele livrinho saíam encantamentos perdidos no tempo, coisas do Quilombo do Jabaquara, sempre em voz baixa, mirrada, palavras curadoras. A noiva, neta de dona Ditinha, acompanhava respeitando o preceito.
No terceiro dia, começou a apresentar sensível melhora, confirmada com os exames e admiração crescente pelo tratamento da velha. A pajelança da senhorinha durou seis dias, tempo para se ambientar no hospital e tornar-se assessora espiritual de dois cirurgiões e um psiquiatra e contadora de histórias da ala infantil, ou griot como preferia. Assim dava por encerrada a tarefa. E, no sétimo dia, Wilson se levantou sozinho, aprumou e assustou um enfermeiro que insistia em chamá-lo pelos corredores de “defuntinho da garrafa”.
Enfim saía do hospital, corpo renovado, ainda incrédulo dos últimos dias internado, às vésperas da morte. Saía sem explicação coerente dos médicos. Agora pensava no casamento próximo, compra das alianças, os móveis que começariam a chegar e apertariam o quarto e sala da casa dos pais.
Foi enquanto a noiva dirigia o carro em sentido à zona oeste que veio a lembrança de quem nunca deveria ser esquecida:
— Vó Ditinha!…Como foi prestativa. Todos aqueles dias te visitando, pondo na sua boca aquela beberagem. Que fé tem a minha vó. O conhecimento dela salvou a sua vida. Que coisa. Nossa! Dizendo isso me dá até um arrepio. Assim que der precisamos visitá-la e levar um presentinho. Se bem que você tem outra dívida a pagar…
Mais do que se lembrar da senhorinha, lembrava também de suas palavras: “Vá ao terreiro… E agradece ao senhor da Colina”.
Se antes piscar era difícil, piscou e confirmou com o corpo todo dizendo sim, e sim e sim. Tinha palavra. Ficou pensativo.
Cada semáforo que Sálvia parava, o vermelho lembrava a sacola da velha, e o verde, a maceração das ervas sagradas de difícil gosto. Não saía da boca. De fato, somava a felicidade de estar vivo e manifestava uma crescente angústia e, por que não, urgência em cumprir a promessa. “Wir, Wir…” Vinha repetidamente as palavras da vó Ditinha em seus ouvidos. Deveria cumprir naquele mesmo dia a promessa, ainda não sabia como nem onde.
Sálvia, mudando de caminho devido à manutenção na via principal, fez desvio orientado pelas placas. Mas as placas começaram a confundir a moça, e entre tanta direita e esquerda, estavam perdidos! Resolveram parar e perguntar num bar próximo. O homem saiu do carro buscando explicação. Chateado porque Sálvia saía também, ciúmes.
Curiosamente o bar estava muito cheio em relação aos bares vizinhos. Havia um microfone no fundo, atabaque, berimbau e alguém pedindo silêncio aos frequentadores.
Perceberam que se tratava de um sarau que tanto acontece nas periferias e decidiram ficar um pouco. A noite convidava e embolava pra depois a promessa feita na beiradinha da cama sob olhar da dona morte. Wilson pediu guaraná sem gelo. E, claro, já pensava em noivação, mas gelado ou bebida forte seria pedir pra morrer. Esse momento era para saborear a vida. Foram muitas poesias, cantilenas, sorrisos acompanhados de reivindicações.
O casal ouve de um senhor de chapéu de couro versos rimados, que contavam as desventuras de um moço mulherengo à beira da morte, um safado salvo pela mãe da sogra. Graças a uma garrafada de raspa de chifre e pau de ferro. Todos riram. Era um cordel jocoso que arrancava riso da turma no bar. Wilson e Sálvia se lembravam da história deles e, particularmente, Wilson lembrava e sentia o gosto da garrafada voltando à sua boca.
Outra poeta do sarau lembrava-se do falecido escritor Paulo Colina, tendo em mãos um de seus livros para sorteio, artigo raro e imediato objeto de cobiça entre o público do bar. Por gozação, duvidava que entre os presentes houvesse um Wir, ou até mesmo Wilson, como constava na dedicatória do livro adquirido em sebo. E foi assim que Wilson levantou a mão e, entre palmas e abraços e tapas nas costas e o amargoso gosto da garrafada de raspa de chifre e pau de ferro, foi receber o livro e, claro, escolheu um poema para ler. Talvez fosse essa a intervenção do senhor da Colina,… vai saber,… ou outra história da vó Ditinha. Na dúvida firmou pensamento, agradeceu e leu o poema.