Um conto de Silvana Schultze
Silvana Schultze é jornalista e escritora, autora do livro de contos Lua em Libra (Editora Patuá, 2018) e do romance Onde começa o infinito (em produção). Mestre e doutora pela USP, atua como jornalista há mais de 20 anos e é pesquisadora de interfaces entre literatura, saúde e comunicação.
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Rômulo
Martim é meu pai. Não sou filho único, mas é como se fosse. Assim como ele, que teve onze irmãos, nenhum de verdade. Nem de sangue, nem de criação. Meu pai foi adotado, mas nunca soube o que é ter pai. Teve carrasco, dele e dos irmãos, que não eram irmãos. Adotados para trabalhar na fazenda, com registro, tudo direitinho. O que não impediu que fizessem o que fizeram com todos eles: sem escola, sem médico, dormindo pelo chão, onde tivesse espaço para cada um. Meu pai nunca falou nada desse tempo, soubemos depois que eram muitos mais. Tantos que passaram a não caber no abrigo, e alguns começaram a ser levados para a casa. A casa da família, a casa do pai que nunca agiu como tal. Nunca falou da mãe, a gente sabe que existiu. Não sei que fim levou, se sabia o que acontecia. Os outros se mandaram assim que deu, só meu pai quis ficar, mesmo sabendo que o povo da cidade não aprovava. Diziam que não aprovavam o que acontecia antes, mas ninguém nunca fez nada. Só tomaram coragem quando passou a ser contra o meu pai, um coitado que mal sabia o que estava acontecendo, ou o que tinha acontecido na vida dele. Dizem que a gente não sente falta daquilo que não sabe que existe. Não sei se é verdade. O tempo que eu vivi lá, com o pai, a mãe e meu irmão, eu sentia falta disso daqui, nunca tendo vindo para cá. Sonhava com lugares que nunca tinha ido, com a voz de gente que eu não conhecia, com quem eu nunca tinha falado. Aquilo doía, me fazia acordar com o peito apertado, não conseguia voltar a dormir logo. Quando pegava no sono de novo, sonhava mais, sonhava pior, diferente, com todas as histórias misturadas, e acordava tentando descobrir o que aquilo tudo queria dizer. Não tinha como saber, não conhecia nada daquilo. Nunca contei para o pai ou para a mãe, eles não tinham como ajudar. A mãe dizia para não incomodar o pai, tinha coisa demais na cabeça dele, tinha visto maldade demais, tanta que nem sabia mais o que não era ruim. A mãe tentou ensinar o que era carinho, o que era amor, não conseguiu. Só o suficiente para fazer dois filhos, criados de um jeito torto: um pai que não sabia o que fazer, e uma mãe que tentava fazer pelos dois. Meu pai me amou, do jeito dele, amou também minha mãe e meu irmão. Nunca foi embora, mesmo querendo, mesmo todo mundo sabendo que o amor que ele queria era outro, e que talvez tivesse encontrado, esse amor. Mas minha mãe tinha dado a mão para ele, e ele nunca mais esqueceu isso. Não tinha como. Com a minha mãe ele descobriu o que era ter uma vida boa, sem saber que a vida que levava era miserável. No lugar em que ele vivia, para onde tinha sido mandado, dentro da sua cabeça, dentro do seu peito, quando ainda era criança, não tinha como distinguir uma coisa ruim de outra. Viver bem, para ele, passou a ser não apanhar, ter o que comer e onde dormir. Mesmo que nem sempre tivesse isso. Porque ele sabia que mais cedo ou mais tarde Dona Violeta, minha mãe, iria dar um jeito. Minha mãe pedia quando precisava, arrumava para ela mesma o trabalho que ninguém queria dar para o meu pai. Ele não aguentava mais trabalho pesado, e não tinha cabeça para trabalho que não fosse pesado. Não sobrava muita coisa, além de cuidar dos filhos, como desse. E assim nós fomos crescendo, eu doido para sair daquele lugar, meu irmão doido para ficar. Nunca entendi porque meu pai não conseguiu ir embora. Teve oferta, para minha mãe, com a gente ainda pequeno. Pouca gente que conhecia a história do meu pai tinha disposição para fazer alguma coisa além de sentir pena, mas essa gente teve. Ofereceram trabalho, lugar para a família ficar, ajuda para arrumar escola para meu irmão e eu. Meu pai não quis, e nesse dia minha mãe deixou de falar com ele. Ela sabia o motivo dele não querer deixar o lugar, e por isso decidiu morrer para ele. Deixou de ser Dona Violeta e virou Senhorinha, a quem meu pai nunca mais dirigiu a palavra diretamente. Foi o jeito dela se vingar da rejeição, de ser traída sem ser, da vergonha de toda a cidade saber que meu pai tinha trocado a mulher por outro homem, um homem que também era responsável pela desgraça do meu pai, porque enquanto meu pai e os outros meninos apanhavam, dormiam no chão e todo o resto, esse homem estava na casa grande, sentando à mesa para tomar sopa quente, dormindo em cama quente, descansando para na manhã seguinte arrumar um pretexto para sair de casa, ir olhar os meninos todos. Olhou um por um, até escolher meu pai. Ou até meu pai escolhê-lo. Ninguém nunca soube como a coisa aconteceu, os dois já não eram mais crianças para ficarem brincando, e quando todo mundo se deu conta, a coisa já tinha acontecido. E continuou acontecendo mesmo depois que o pai deles morreu, e que todos os meninos foram largados por aí, meu pai entre eles. Andando pelas ruas, sem ter o que comer, sem ninguém ter coragem de fazer alguma coisa para ajudar, não por medo do homem, que já tinha morrido, mas por medo de ter que dar conta de porque nunca ninguém fez nada para ajudar aqueles meninos. Eram muitos, não tinha como ninguém saber, como gostavam de dizer. Todo mundo sabia. Até hoje sabe. Quando chega gente nova querendo ouvir a história de novo, conhecer a casa, sempre tem quem acompanhe para contar a história. Meu irmão tem o desplante de fazer isso. Diz que ganha dinheiro, que vale a pena, que pelo menos compensa o que nosso pai passou. Não o chamo mais de pai. Para mim ele é Martim, e o chamo assim desde que Dona Violeta deixou de falar com ele. Viveram juntos ainda por 22 anos na mesma casa, sem trocar palavra, sem minha mãe ter coragem de colocá-lo para fora de sua casa e de sua vida, porque sabia que o homem não queria meu pai na casa dele. Ninguém sabia como a coisa acontecia, e nem se a coisa acontecia. Ninguém nunca viu os dois juntos, mas a simples existência do boato já foi suficiente para transformar nossa vida num inferno. Fui embora assim que pude, e conheci, finalmente, tudo aquilo de que sentia falta. Não tenho mais como viver sem isso, mesmo tendo conhecido aqui outro grau de miséria. Miséria na minha cidade é ficar uns dias comendo pouco. Miséria aqui é ir parar na rua, sem ninguém te ver, sem ninguém te ajudar. Descobri como era ser meu pai, por um tempo, e só tive mais raiva dele. Porque lá, na minha cidade, tudo o que ele tinha que fazer era pedir ajuda. Se ele pedisse, alguém daria. Tudo o que as pessoas de lá queriam ouvir da boca dele era que ele precisava de ajuda, que estava sofrendo. Mas meu pai não sabia que sofria, porque para ele só existia aquilo. Não sabia que poderia trocar aquilo por alguma coisa melhor, e nem saberia como.
A mãe morreu, e volto neste final de semana para o enterro. Ajudar meu irmão com a casa, a decidir o que fazer com o pai. Meu irmão quer continuar vivendo na casa, mas não sabe o que vai acontecer com o pai, sem Dona Violeta. Ninguém sabe. Senhorinha cuidava de tudo, cuidava para que o pai não perdesse de vez a sanidade, agora que o homem tinha morrido. Sem nunca levar o pai para a casa dele. Na única vez que a mãe tocou nesse assunto – ou em qualquer outro relacionado ao pai – ela falou que achava que o pai esperava por isso: ir viver com aquele homem, que achava que eles se amavam. Chamou os dois de irmãos, falou “como vocês dois”, para mim e meu irmão, mas nós dois já sabíamos que era outra coisa. Meu irmão já tinha o trabalho de contar a história da casa e dos moleques adotados para trabalharem como escravos, mas nunca contou que era filho de um deles. Embora todo mundo soubesse, e embora fosse isso que fizesse com que ele conseguisse mais gente para levar à casa do que os outros. Assim meu irmão fez o pé de meia dele, eu fiz o meu daqui, e consegui sair da miséria. Da que eu tinha lá e da que eu caí aqui: tenho esposa, filho e filha, emprego e casa. Demorei para ter casa. Mais do que deveria, mais do que precisava. Era como se eu não tivesse coragem, de ter para mim a casa que meu pai e minha mãe nunca tiveram. Sempre morando de favor, de casa em casa. Sem fazer vínculo com ninguém, sem conhecer vizinho, sem ter para quem pedir quem olhasse os filhos um pouco, enquanto ia ali comprar um negócio. A mãe sempre carregando a gente com ela, quando Martim não estava bem, e começava a não falar coisa com coisa, a olhar para os filhos sem vê-los, como se estivesse de novo vendo aqueles meninos todos. Deixando de comer, para que sobrasse mais comida para a gente, mesmo que tivesse comida o suficiente. Não era para a gente que ele deixava aquela comida, era para os outros 11. O que tem na mesa dos meus filhos hoje dava para alimentar os doze – eu olho e não consigo comer. Eu saio para almoçar com meu chefe, coisa de trabalho, e não tenho vontade de comer aquela comida. Engulo, meu chefe fala que eu preciso aprender a apreciar. Sabe de onde eu vim, diz que é por isso que me quer. Diz que eu consigo o que ninguém mais consegue, porque só eu sei o que é não ter nada. Que eu tenho que batalhar cada centavo, e não vou deixar ninguém tirar de mim o que eu já consegui. Mas é dele mesmo que ele fala, está falando da mulher, que quer ir embora, e ele não quer, mesmo tendo outra, e já tendo tido outras. Diz que a mulher não quer viver assim, que quer ser única, mas que ele não consegue. Pergunta como eu consigo, dá risada, pisca o olho e diz que eu devo ter outras. Quer saber se alguma vez eu soube de alguma traição de meus pais, mal sabe ele o que é traição. Acha que traição é dormir com outra pessoa, pensar em dormir com outra pessoa. Se for assim, me pai traiu minha mãe. Se for assim, eu traio minha esposa a cada vez que saio para almoçar a trabalho, a cada vez que desvio o olhar para a francesa, circulando pelo restaurante. Mesmo quando está acompanhada dos filhos. Soube que ela percebia no dia em que ela mexeu nos cabelos, soube que era para mim. Naquele dia aprendi o que era malícia. Só fui me casar muito tempo depois, só fui ter filhos mais tempo depois ainda. Até hoje não sei o nome dela, desconfio que mudou de cidade. Às vezes vejo o marido, aquele que eu achava que era pai. Me pergunto se também pensam que minha esposa é minha filha. Ainda não, mas talvez um dia. Contei essa preocupação para meu chefe, que deu risada. Faz sentido, para ele, ser casado com uma mulher mais nova. Ele mesmo é, com essa que quer ir embora. Ele diz que ela quer ir embora antes que fique velha demais para encontrar outro homem, e eu só consigo pensar que se ela quer encontrar outro homem, é porque não está feliz com o que tem em casa. Me pergunto se minha esposa está.
Meu irmão não se casou, se amigou, como dizem na minha cidade. Meus pais também eram amigados. Eu me casei no papel, foi conselho de meu chefe, dizendo que aqui era melhor que fosse assim. Que dava para separar tudo no papel, se fosse de outro jeito ficava tudo sem saber direito de quem era, quem tinha conseguido o que, que era difícil na hora da separação. Não sei quem conseguiu o que no meu casamento. Tudo o que eu queria era paz, a paz que meu pai conseguiu vivendo com minha mãe, mesmo amando outro homem, mesmo querendo viver com outro homem. Não tinha jeito daquilo acontecer, naquele cidade, naquele tempo, com aquela história que os dos tinham. O homem que me pai amou era filho biológico do homem que adotou meu pai e os outros onze meninos para trabalharem como escravos na fazenda. Eram irmãos adotivos, assim como os outros, mas assim como os outros, nunca foram criados assim. Viviam separados, até que o outro tivesse idade e ideia suficiente para inventar um jeito de sair de casa e andar pela fazenda, vendo de perto o que acontecia.
Meu chefe uma vez pegou a francesa pelo braço. Estava bêbado, tinha esquecido que não se faz uma coisa dessas com uma mulher daquelas, muito menos na casa dela, que era o que era o restaurante dela, dela e do marido, o marido andando por aí. Muitos homens conversavam com a francesa, o marido por perto, parecendo não se importar, Talvez se orgulhasse, como meu chefe se orgulha da esposa quando consegue arrastá-la para ser vista em público. Quando consegue que ela sorria. Brigam de tabefe, ela joga coisa nele, ou pelo menos ele diz que joga. Diz que é louca, mas pouca gente acredita. Pouca gente gosta do meu chefe, mas foi ele quem me tirou da miséria. Falo isso para ele, e ele diz que eu saí da miséria sozinho, no dia em que decidi vir para cá. Levei muito tempo para decidir vir, ou pelo menos pareceu que sim. Hoje eu acho que vim na época certa, que não tinha como ser antes. Se tivesse vindo antes, teria voltado, com o rabo entre as pernas, sem nada. No tempo que eu vim, logo consegui me enturmar, mesmo na rua. Antes disso, eu não sabia o que era enturmar. Não conhecia essa história de turma, mudei demais, não tive tempo de formar. Era meu irmão e eu, os dois juntos, sempre se odiando. Ele me odeia até hoje. Acho. Minha mãe sempre fez que não via, acho que tinha dificuldade em aceitar que existisse ódio daquele jeito, gratuito, numa família que já tinha conhecido tanto ódio de verdade. Acho que minha mãe morreu pensando que o que tinha entre meu irmão e eu não era ódio, que era coisa de criança, mesmo a gente não sendo mais criança há muito tempo.
A francesa almoçava às cinco da tarde, às vezes com as crianças. É o horário que sobra, acho. Até o dia em que ela não apareceu mais. Fui na semana seguinte, e na outra, e nada. O restaurante continuou aberto, colocaram alguém de confiança para tocar. Ali do lado era onde eu andava quando cheguei, quando descobri o que era turma. Ficava dia e noite, subindo e descendo a rua, até conseguir um skate, até quase ser atropelado. A mulher que estava dirigindo quase morreu de susto, parou o carro no meio da rua, perguntou se eu estava bem. Foi a primeira vez que vi essa preocupação aqui. Com uma mão ocupada segurando o skate, só sobrou uma, para fazer meio coração, o gesto que eu aprendera aqui, mas que nunca tinha feito. Nunca mais fiz, nunca mais tive oportunidade. Infantil, faz tempo que perdi essa inocência. Mas naquela hora eu poderia ser um garoto da cidade aprendendo a andar de skate, com família em casa me esperando para jantar, preocupados porque eu ainda não tinha chegado. E que iriam ligar para a delegacia e para os hospitais se eu não aparecesse, se a mulher tivesse me atropelado de verdade. E como não atropelou, eu poderia tê-la chamado para conversar, quando ela parou o carro. Não sei qual a idade dela, mas não devia ser mais nova do que eu. Eu não me importava. A francesa não é mais nova do que eu. Não sei por que tem filhos tão pequenos. Esqueço que eles já cresceram. Ainda tenho na cabeça a imagem de duas crianças pequenas comendo macarrão.
O enterro é neste fim de semana.