Um conto de Simone Padilha
Simone Padilha nasceu em São Paulo em 1967, e vive em Cuiabá desde 1981. Formada em Letras (atua como professora do Departamento de Letras da UFMT e do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem), é apaixonada por literatura, música e artes em geral. Escreve poemas há algum tempo e atualmente está se aventurando pela narrativa curta.
***
Batom
Ela resolveu aceitar o convite. Não era desses preconceitos, e seu amigo ficava lá o tempo todo no isso-vai-te-fazer-bem. Ai se a mãe-beata soubesse, mas sabe lá o que ela tem a ver com isso?
Perdeu-se pelo caminho, mas parece que alguma força estranha fez achar a rua de volta. Bateu no portão, saiu uma mocinha de turbante sorridente. “Senta, já vai começar”. Já tinha muita gente, todo mundo esparramado na varanda que cercava a casa branca de janelas e portas azul-escuras. Tinha uns quartos lá pros fundos, e um terreno cheio de mangueiras e cajueiros. Caju, como amava cajus.
Ficou calada, mas sorriu e sorriram de volta. Sentou no cantinho, e loguinho começou uma batucada e uma canção chorosa, deu um medinho quando uns gritaram palavras de fé de uma língua estranha e pularam no meio da roda. Alguns ficavam meio curvados e faziam uma dança de um pé só, outros pareciam que lhes doíam as costas. Alguns foram numa mesinha tratar de pegar seus cigarros e charutos. Quem vai consultar com Seu Zé Bala??
Uma moça veio, com um caderninho:
-Senhora vai consultar?
-Diz que sim. Eu quero saber de amor.
– De amor é com Dama da Noite. Ela já vem já, te chamo, aguarda um tiquinho.
Umas filas se criaram e ela ficou ali no cantinho acuada. Dama da noite era uma flor que sua avó tinha no quintal, se lembrou. Era assim porque de noite se abria toda e soltava um cheiro forte. Se virou e viu um caboclo fumegando algo e se embebedando de pinga. Deram outros gritos, e bateram uns tambores. Pensou que era uma festa, será?
-Vez da senhora. Dama tá chamando.
Entrou num quartinho na virada da casa. Lá estava a moça, morenona avantajada, vestida num vestido preto e vermelho, todo cheio de rendinhas e tão brilhoso que nem combinava com o sol quente de rachar.
-Senta aí, moça. Dá sua mão. Quer saber se tem moço, né? Tem menino sim pra ti, mocinha. Pra mocinha tem mocinho. Mas precisa se alinhar, num sabe?
– Como assim?
– Traz presente pra Dama. Escreve aí, sua fuleira.
E veio a moça do caderninho, escrevendo uma listinha:
– Fita vermelha, perfume doce e batom. Um agrado, gosto de agrado.
Levantou-se e pegou uma caixa grande de papel.
– Num vê só? Olha só aqui quanto agrado pra moça. Batom, perfume, presilha, tem até fita de cabelo. Tem fumo também, tem bocetinha. Uns trazem pinga, mas gosto mesmo é de vinho doce, bem doce, num sabe?
Pegou na mão dela. Alisou em cima, virou, alisou embaixo. Será que lê mão também?
– Você precisa ajeitar mais. Tem que vestir mais bonita pro trabalho, coisa de mulher, sabe? Não pode ficar assim, desmilinguida, brusinha e calça de brim, num pode. Sobe os peitos, assim.
E apertou os peitos grandes um ao outro bem pro meio do peito, subindo pro pescoço.
– Põe fita no cabelo, faz cacho. Passa batom, mas tem de ser vermelho. Esse batom que não aparece não dá retorno, esses tal de nude. Tenho um aqui um vermelho, olha, vou te dar. Esse aqui é do bom, bem vermelhão, olha, vou te ensinar: passa todo dia que for pro serviço, mas vê se põe saia e vestido. Não esquece de passar nos beiços, os seus são de beijo molhado. Dá rebolada. Mas vem, vem mocinho procê sim, viu? Tô vendo aqui. E traz os agrados para Dama aqui.
E de repente a Dama se levantou, largou-lhe as mãos de vez, deu uma risada sei-lá-de-quê e enveredou-se pelo quartinho.
Uai… pensou. Foi simbora sem entender nadica de nada e sem confiar. Teatro, pensou. Jogou o batom no fundo da bolsa e esqueceu. Tarde perdida. Ai se mãe sabe.
A semana começou e com ela veio o chororô de novo. Estava difícil todo dia sem carinho, sem ninguém. E esses dias, estava brabo, se molhava até de roçar sem querer no braço de fulaninho, na perna de um zé qualquer do busão. Mas não dava conversa, era moça reservada.
Enxugou as lágrimas e se lembrou do batom. Será? Fuçou a bolsa, lá estava o vermelhão. Segurou na mão, apertou forte. Pensou que talvez precisasse de reza braba, mas ela não tinha pedido nada. Era só passar. Que nada! Será? Decidiu tentar.
No dia seguinte, passou o batom por debaixo do outro, disfarçando o vermelhão. Isso, passa esse e depois o rosinha, e camufla o assanhamento. E se for feitiço, o que vale é que tá nos beiços. Boca boa de beijo, isso sim, ela disse.
Deu um jogo nos cabelos, achou um vestido velho e se enfiou. Chegando lá, foi um rebolê sem fim, subiu a escadaria e sentiu que tinha gente de olho, até um meninote novo afeminado da cozinha deu uma olhadela. Será esse o moço?
De súbito, sentiu os pentelhos queimarem. Que isso? Num momento, já não estava mais ali, aguardava alguém entrar no quarto da despensa dos fundos, já não era mais ela, estava vestida de dama da noite. Não viu o rosto, só sentiu o vento de gente chegando e uma boca quente encostar na nuca. Prensou na parede, subiu a saia, arriou as calças e se esfregou nela. Empina. E logo sentiu o pau grosso invadir sua buceta sem dó, forte, esmurrando a porta. Logo tirou e gozou pelas pernas dela, foi-se. Virou-se e viu Dama da Noite a lhe sorrir. “Dá agrado pra Dama?”
Fechou os olhos, abriu e a cena havia mudado completamente. Já estava em frente da porta da cozinha. Que calor, a vigilância mediu, 50 graus. Olhou em volta, ninguém viu? Ufa, ninguém viu. Só imaginação, pensou. Estava ficando doida de tesão da idade braba. Não tinha ninguém ali, só as donas picando carne e cebolas. Mas estava escorrendo de tão molhada que teve que correr ao banheiro pra se ajeitar.
Que mistério era esse, arre Santíssima?
Dia seguinte, resolveu testar. Agora ia passar o dito cujo sem esconder. Se era pra ser, então vai vermelhão mesmo, escancarado. Se meteu numa saia e num decote e num salto de morte. Mas de noite ia ter vez um banquete demais de chique, tinha que correr pelo salão ajeitando ali e aqui. Vai ver que o chefe, bem que está olhando de ladinho também. O chefe? Mas Dama disse mocinho. Vai ver é convidado, pois que vem só gente chique.
Resolveu descer a escadaria e olhar o salão outra vez. O salto estava cansando, resolver sentar um pouquinho, falta muito pra chegar gente. Cansada, deixou cair a cabeça sobre os braços na mesa. Havia um cheiro forte no ar, de flor. Sentiu um arrepio quando dois braços fortes e negros lhe deslizaram sobre os seus, e um corpo grande se deitou sobre suas costas. Tentou se esquivar, mas as grandes mãos espalmadas já lhe apertavam os seios sobre o sutiã.
Resolver se mexer, e sentiu a cadeira sendo tirada, as mãos a subir nas suas coxas, por baixo da saia, e os dedos invadindo sem dó seu rego. Contraiu-se toda. Doeu um pouco, mas o pescoço estava sendo mordido tão sofregamente, que as pernas foram se abrindo. Sentiu as bandas de sua bunda sendo afastadas e um golpe certeiro, estava sendo invadida em um só golpe, fechou duro os olhos e um grito foi ouvido:
– Agraaado. Dá agraaado?!!
Ao abrir os olhos, nada estava no mesmo lugar. Lá estava ela sentada de novo quietinha na varanda, uma moça gorda lhe olhava, com os dentes pretos de cárie, enfiada num vestido de cetim barato preto e rosa, e com uma das mãos estendidas:
– Traz batom pra Dama, traz?