Um conto de Sonia Palma
Sonia Palma vive na Inglaterra. Professora/Pesquisadora, estudou Letras, Filosofia e Mestrado em Educação Ambiental. Na Europa, tem se dedicado à escrita e à organização de eventos para a promoção da Língua Portuguesa e Cultura Brasileira. Gosta de escrever poesias, pequenos contos e literatura infanto-juvenis. Publicou: Uma Cartografia do Imaginário nas Sendas de Manoel de Barros e Gaston Bachelard (2015); Diesel Went To Live In The Garden (2014, bilingue,Por/Ingl); As Descobertas de Amana nas Matas de Utiariti (2017, bilingue,Port/Ingl).
Acesso para currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/2526126160138395
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A caixa verde
Não era exatamente uma peça da casa que pudesse ser chamada de bonita; não tinha esta pretensão nem mesmo era sua função decorar cômodos. Seu lugar de existir era estar em um quartinho-despensa aberto para a cozinha. Lugar rústico, combinava com o seu verde. Origem ou antecedentes em espaços familiares? Não se sabia. São perguntas sem valor em tempos de vida de infância e sem chances de resgate no tempo que não volta mais. A grande caixa verde pode ter sofrido desimportâncias injustas, enquanto em seu papel entre as mais importantes funções da casa: guardar arroz, às vezes o único alimento em tempos de crise. Aquela caixa verde foi consolo do coração de mãe ao vê-la cheia, mãe aflita em alimentar suas crianças; foi também sinônimo de angústia ao imaginá-la vazia antes da hora. Foi sinal de partida; foi esperança de chegada; foi sinônimo de saudade ao saber quão longo seria o tempo até que se esvaziasse. O encher e esvaziar daquela caixa, de alguma forma tinha um ritmo similar ao ciclo das cheias do Pantanal, um certo bailado responsável pela manutenção da vida local. Era assim aquela grande caixa verde, seu existir em ciclos, entre estar cheia ou vazia, era responsável pela manutenção da vida da casa. Era o conforto de um pai, ao saber que a deixaria cheia antes de partir em busca de mais sustento para a família. Era também ela o seu desespero à necessária certeza de ter que voltar antes que se esvaziasse. Riqueza era uma forma de vida impensável pelas crianças naqueles tempos da família. Para elas, o tamanho da riqueza era medida pela caixa verde: quando cheia matava fome, quando vazia matava saudade. Isso sim era riqueza em dobro! Não havia sentimento de pobreza se houvesse alegria na barriga. A alegria ou tristeza dos olhares eram controladas entre o encher e o esvaziar da caixa. A cada nível do seu conteúdo, sentimentos extravasavam. Cheia era consolo de mãe, conforto de pai; era também saudade latente. Em se esvaziando, era saudade enchendo o dia. Quanto mais vazia, mais doía a partida, e mais esperada a chegada. O movimento do esvaziar podia ser comparado ao olhar a um relógio, horas passando, diminuindo o tempo do reencontro; era sinal de proximidade, do retorno. Quando vazia, a caixa era angústia, medo, desespero; mas era também esperança de chegada breve. O ritmo do encher e esvaziar durante os tantos anos da caixa verde era como um respirar, fazendo dela parte da vida na casa. Em seu compasso, determinava o tempo em que as crianças ou brincavam alegres de barriga cheia, ou sentiam fome e brincavam tristes de barriga vazia. A proximidade da volta do pai era calculada pela medida do arroz dentro da caixa. Vinte e um dias, sete crianças e a fome assombrando uma mãe. A caixa verde, antes cheia de arroz, era já quase oca. Encostada na parede do rústico quartinho-despensa, testemunhava a mãe sentada à mesa a olhar para o nada, por uma tarde inteira, debruçada em preocupação com os filhos. Mais um ciclo se cumpre, antes que a retirada de sua última porção de arroz a fizesse dar um profundo respiro, voltando a ser uma grande e completamente vazia caixa verde.