Um conto de Tatiane Santos
Tatiane Silva Santos (Jundiaí, 1983) estudou Letras e fez mestrado em literatura hispano-americana na Universidade de São Paulo. Atualmente é doutoranda em Educação pela mesma universidade e trabalha em Alto Araguaia-MT, onde é professora de língua espanhola e literatura na Universidade do Estado de Mato Grosso. Publicou Pedras no telhado (Patuá, 2018) e Tsurus (Quase Oito, 2020).
***
Fagulha
Um filho de cada pai.
Já perdi a conta de quantas vezes me disseram essa frase em diferentes entonações.
Três meninos. Um de cada pai, todos meus?
Eles, os pais dos meus filhos, tranquilos sem estes olhares e eu aqui com as crianças e esta frase, que me acompanha, assombra, dorme comigo. Enquanto viajo no ônibus que atravessa a cidade vejo a palavra buceta pichada no muro. Desde a infância, foi onde a descobri, assim mesmo, fora do meu corpo, escrita com cores e formas diferentes, um xingamento, uma ofensa a buceta ali se desenhando. Em meus tempos de menina eram escritas geralmente por traços masculinos. Quais seriam as letras das mulheres?
O desejo para maiores: os melhores contos surgem daquela vontade de lamber o prato ao final de uma comida muito boa.
Nem todos.
A mediação das vontades aparece algumas vezes com a sensação de umidade ou secura. Em alguns dias o limite pode ser a pressão da calcinha na pele, um pulsar quase imperceptível enquanto você ajeita as roupas no varal, uma pressão maior ao sentar-se para a leitura, o cruzar das pernas; desassossego e desague.
Fagulha.
A baunilha escorrendo entre os dedos e a cabeça mareada pelo ácido mefenâmico misturado com outro remédio porque a dor tem dias que não passa assim tão simplesmente. Segundos o tempo sem as crianças. Lábios secos, o vestígio das pontadas que em algumas horas reaparecem. O sorvete escorrendo me faz priorizar a urgência imediata pelo chocolate da cobertura, esquecer os amargos dura segundos.
Me lembro.
Quando era menina, a vizinha estava desfiando frango na pia e fui lá, curiosa, observar. Mareio. De repente as minhas irmãs saem do quarto com um pacote de absorvente perguntando o que era; minha cara de espanto e ela disse sobre o sangue das mulheres. Corri de volta pra casa e me joguei na cama, tudo girando: mareio, mareio, mareio.
Quantas crianças cabem na frase: um filho de cada pai?
Esqueço o questionamento com uma dose diária de hormônio que mexe com as minhas vontades e me dá uma leve dor de cabeça, dizem que melhor que a dor de carregar mais um menino pra cima e pra baixo. As bulas explicam quase tudo pra mim.
os desejos
fora
das ordens do dia
[só por hoje]
parir
ou não parir
pode ser uma questão?
Fome: a vontade é semelhante ao ato de comer pequi. Se roer demais chega nos espinhos. A palavra agudez toma forma no meu corpo geralmente uma vez por mês. Brinco com ela, mas nem tanto a ponto de chegar nos espinhos.
Roma está tão longe!
Terá o rato roído a roupa da rainha do cerrado?
Um filho de cada pai e todos comigo.
Nem sempre.
Certa vez, contei na escola, mentindo descaradamente, que já tinha visto mar, deu trabalho inventar tanta areia. Quando vi o mar pela primeira vez, menti novamente, enganei meu namorado, disse que já conhecia. Aquela imensidão outra vez, quanta bobagem!
Queria o momento só meu.
Eco.
Um filho de cada pai. Podem repetir à vontade. Ninguém nunca saberá que éramos seis.