Um conto de Taylane Cruz
Taylane Cruz é natural de Aracaju/SE. Jornalista formada pela Universidade Federal de Sergipe e escritora, autora dos livros Aula de dança e outros contos (2015), A pele das coisas (2018) e O sol dos dias (2020). Possui contos publicados em diversos sites e revistas como ÉPOCA e PALAVRA.
O conto abaixo é inédito.
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O beijo
Dar o primeiro beijo sem susto, sem barulho, sem ruído, com o silêncio das borboletas quando se tocam. Dar o primeiro beijo assim como se fosse uma brincadeira, como se, no delicado encontro, dissesse, mas sem a necessidade de palavra alguma: eu te amo. De que outra forma se pode dizer a alguém “eu te amo” senão assim usando palavras? Lá estava ela diante do espelho ensaiando e se fazendo a pergunta: como não usar palavras? Decidiu então que usar palavras seria um excesso. Beijaria apenas, e no beijo deixaria uma pessoa inteira, deixaria seu cheiro, seu gosto, seu jeito de falar, de andar, de dar risada, suas cores e comidas favoritas. Não queria pedir conselhos à mãe, sabia o que iria ouvir. Melhor fazer tudo em segredo mesmo, afinal todo mundo carrega um segredo bem escondidinho dentro de si. A dúvida maior agora era: passar batom? Não era muito de pintar a boca, mas talvez o momento pedisse um toque especial. Aquele batom cereja, que a tia Vera lhe havia dado no Natal, talvez servisse para alguma coisa agora. Passou o batom. Os lábios inchados, carnudos como os de todas as mulheres da família, se agigantaram como uma fruta polpuda, madura, suculenta, prontinha para se abrir. Fez um biquinho e caiu na gargalhada; apesar de achar bobagem estava até bem bonitinha com aqueles lábios pintados. Sacudiu os ombros para espantar o medo que insistia em pousar-lhe nos ombros, na cabeça, no coração, espetando tudo com seu bico de urubu. Tentava espantar o que não fosse singelo, e ficava repetindo a palavra diante do espelho, um beijo singelo, singelo.
Lá foi ela em busca de seu primeiro beijo. Estava tudo combinado. Marcaram no dia anterior, deveriam se encontrar nos fundos da escola. Em seus doze anos de vida, nunca havia dado um passo tão importante, tão ousado. Andava pelo caminho ladrilhado de pedrinhas coloridas e nem reparava no mundo ao redor, tão dentro de seu próprio mundo estava. O rapaz de bicicleta com sua caixa de picolés e seu sininho; o velho vendedor de algodão-doce; a velha senhora arrastando os chinelos e sua bengala enquanto carregava uma sacola de pães; os vira-latas mijando na pracinha. Personagens que passavam como fantasmas, visões de um mundo no qual agora ela não desejava estar, pois estava a caminho do momento mais importante dos seus doze anos, o primeiro beijo. Ah! Arrancou uma florzinha miúda no caminho, guardou-a no bolso só para disfarçar.
Quanto mais perto chegava, mais nervosa ficava. A cada passo a distância era menor e tinha medo, muito medo daquele primeiro beijo. Mas quando chegou, todos os monstros desapareceram. Agora era apenas a hora de beijar. Como combinado, se encontraram nos fundos da escola, estavam cara a cara. A princípio não sabiam o que fazer, não sabiam se tocar, falar, as palavras escapuliam; Tentavam agarrá-las, mas elas eram sapecas, pululavam feito rãs. Até que a coragem chegou. Não saberiam dizer quem a pegou nas mãos primeiro, mas quem pegou aproveitou e, depressa, deu o primeiro beijo. As duas bocas se encontraram e não foram inventadas ainda palavras singelas o suficiente para descrever a magia daquele primeiro beijo. Tentavam até abrir a palavra magia e encontrar dentro dela outras palavras que servissem como peças, muitas peças de um corpo maior que explicasse a singeleza daquele beijo, daquele amor. Amor. Palavra sem dono, palavra que gostavam de repetir de diversas formas como num joguete: amor, roma, mora, ramo, armo, omar, dentro da palavra Amor o Mar. Brincadeira que faziam para montar e desmontar aquela palavra que nada e tudo dizia, que eram como pétalas de borboletas e só, sem explicar. Ali de mãos dadas riram e quiseram beijar mais porque beijar era gostoso, descobriram, e havia muitas possibilidades. A língua, o sal, o doce, o agridoce, a baba, a carne molinha da língua, todo um caminho a ser percorrido. O beijo, logo perceberam, era um prazer em constante dilatação capaz de abrir os braços e fazer todo o corpo se entregar. Só não descobriram mais porque uma mão abrupta roubou o beijo, a magia, a florzinha, a singeleza, tudo. Mão que arranca sem dó as coisas vivas. Foi a mão do irmão que flagrou o beijo e, sem delicadeza, separou-as como se desfizesse um laço, as mãos delas se largando no vazio. Foi rápido e impiedoso como se arrancasse a raiz de um dente. Como era seu o irmão, libertou a outra, vai, corre, Aninha! Aninha correu, mas levou junto um naco do beijo, guardou-o depressa dentro da roupa, escondeu-o dentro das lágrimas e correu até esquecer tudo, até esquecer o caminho para se chegar à palavra Amor; chorou tanto que a palavra secou.
A que ficou enfrentava o irmão, mas perdia na disputa, pois era grande, imensa aquela mão. Apanhou muito, levou muitos tapas, a cara já toda borrada com o batom de cereja. Mas lutou, não era de se entregar assim facilmente. Esperneou, chutou, gritou. No entanto, apanhou, apanhou muito daquela enorme mão e perdeu, às vezes sabia a hora de morrer numa briga. Voltou para casa com o irmão jurando matá-la se a pegasse beijando aquela menina outra vez. Sozinha, surrada, ela ia à frente no caminho ladrilhado com pedrinhas coloridas, o irmão como um soldado vigilante atrás dando-lhe sucessivos cascudos. Ela enxugava as lágrimas enquanto tentava guardar os restos daquele beijo, agora pó, eram como restinhos mortos de uma flor. Olhou o céu e sentiu o peso daquela mão que abriu nela uma fenda pela qual entrava agora um grosso, profundo e eterno silêncio.
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(Fotografia de Pritty Reis [detalhe em p&b da versão original colorida].