Um conto de Thainá Carvalho
Thainá Carvalho é uma escritora sergipana de 30 anos formada em Comunicação Social. É criadora e editora da Revista Desvario, uma publicação digital sem fins lucrativos voltada à difusão da literatura contemporânea criada por mulheres. É integrante do coletivo feminino URBANAs e publicou de forma independente o ebook Síndromes, de prosa poética. Já publicou em revistas e sites como Revista Aboio, Portal Não Kahlo e A Estranhamente, além de ser cronista do portal Pra Você Saber e coorganizadora do Sarauema. Lança, em 2020, o livro de poesias “As coisas andam meio desalmadas”, pela editora Penalux.
***
A Bênção
O sol estava forte. Devia ser umas três horas da tarde. A rua estava atrapalhada, muitos buracos, tratores e caminhões. Carros passavam apertados, beirando a cal das calçadas. De gente, só os trabalhadores. Até o momento em que ela saiu da casa.
E, aqui, leitor, me foi mandado alertá-lo: as cenas que se seguem são incomuns. Raras, mesmo. Há que se assustar, talvez, não sei. Como simples narrador, permaneço fiel aos eventos, sem exagerá-los ou diminuí-los – a intervenção não convém. Perguntará você se eu me espantei. Bem, devo lembrar-lhes que estou apenas fazendo o meu trabalho.
Ela saiu da casa. Puxava pela coleira um cachorro que levava pra passear. Um cachorro bonito, grande. Provavelmente, de raça. A menina, não sei. Era como qualquer outra moça em seus dezoito anos. Era bonita também. Não é necessário comentar os olhares que atraiu dos homens que consertavam os buracos da rua. Ela seguiu pela calçada, segurando o cão bem rente a si. Ele insistia em puxar mas ela conseguiu controlá-lo até que viraram a esquina e desapareceram.
Como assim, desapareceram? Mas não é sobre a menina isso tudo? Calma. Essa não é uma história para aqueles que não têm tempo, que não observam. Continuemos focados na rua que ficou lá, pacientemente esperando seus reparos. Enquanto a menina virava para a direita, eis que entrava pela esquerda, um menino. Vamos chamá-lo de Moreno, o que nem é ideal visto que a pele dele era escura, brilhante de sol e suor. E aqui já me vens com um “Ah! Então é sobre o menino”. Não replico. Cada um que tire suas conclusões.
Moreno vinha puxando por uma cordinha fina um carrinho, desses de supermercado, cheio de coisa. Eram papéis, sacolas, trastes que chacoalhavam enquanto o próprio menino chacoalhava, cambaleando naquele passo torto que carregava tanto peso. O carrinho se arrastava com dificuldade, emperrando em pedregulhos, às vezes estacando. Moreno continuava a puxar, de vez em quando com uma só mão enquanto usava a outra pra esfregar aquele calor insuportável da testa. Não usava camisa, também não sei se tinha.
Caminhando e arrastando, Moreno mal levantava a cabeça. Vergava. Não porque fosse fraco. Novo que era, lá pra uns treze anos, salvo engano, já tinha muitos músculos que se sobressaíam no corpo magro. E, mesmo com cada veia pulsando de desgaste, o carrinho estacou mais uma vez. Cansado, soltou a corda. Olhou para os lados de forma apática, quase como se fizesse uma desistência muda. Entretanto, viu, logo ao seu lado, dois rapazes que colocavam cimento em um buraco. Lembrou que, há muito tempo, tinha sede.
– Ei, vocês têm água aí?
Eles gritaram para o motorista.
– José! Traga água aí que o menino aqui tá pedindo.
José desceu da boleia com um garrafão de água e uma garrafa de plástico vazia que entregou a Moreno. Para facilitar, Moreno tirou um objeto pontiagudo do carrinho e cortou a garrafa. Sequer pensara em encher a garrafa pra poder tomar mais tarde. O gargalo caiu no chão e a água, o motorista despejou no copo improvisado. Moreno tomou dois copos. Ia tomar o terceiro quando viu um carro parado no meio da rua. Não conseguia passar porque seu carrinho estava atrapalhando. O menino correu e puxou o carrinho com tudo, rápido pra não atrapalhar a vida do moço lá do carro. No final, acabou se esquecendo do terceiro copo de água.
Mas eu não me esqueci da menina. No meio disso tudo, ela não só já voltara com o cachorro pela rua como agora ia seguindo pro outro lado. Provavelmente, o cão a convencera disso. Já iam na frente de Moreno, que, por sua vez, voltara a puxar o carrinho depois de agradecer aos moços.Moreno achou o cachorro bonito. Quando não estava com a cabeça abaixada pelo esforço, olhava para o cão. Via as pintas pretas, o rabo comprido e alto, a língua vermelha pendurada pra fora. Ficou realmente impressionado, como se fosse algo de outro mundo. Lindo demais. Queria poder ter um daquele. A menina acabou percebendo que Moreno não parava de olhar. Ficou até receosa. Hoje em dia, é melhor desconfiar de tudo porque nunca se sabe de nada. O cachorro parava aqui e ali, cheirando postes, atrasando o passo da jovem. Logo, Moreno ficou lado a lado com ela. Ele olhava o animal com admiração, ela olhava o menino com temor. Ele não pareceu perceber nem se importar. Ainda andando, sem parar o carrinho, Moreno perguntou:
– É cachorra né?
– É
– Que raça é?
– Dálmata.
– Bonita demais. Deus benza viu.
Moreno sorriu e continuou puxando o carrinho. A menina bem que sorriu e, pouco depois, voltou para casa. Terei que dizer que é o fim. E já vou antecipando as respostas iradas que os leitores irão dar. “É isso?”. Sim, é isso. “Não entendi foi nada, sobre o que é esse texto afinal?”. Bem que eu gostaria de explicar mas, assim como vocês, sou apenas um passivo observador. “O que há de incomum e impressionante aqui?”. Também não sei, mas adoraria saber. Deve ser uma bênção conseguir enxergar o complexo no que parece ser simples.