Um conto de Thiago Costa
Thiago Costa é historiador. Faz doutorado em Estética e História da Arte pela USP, é autor de O Brasil pitoresco de J.B. Debret ou Debret, artista-viajante (RJ, 2016) e organizador – ao lado de Ariadne Marinho – de O jardineiro de Napoleão. Alexander von Humboldt e as imagens de um Brasil/América (sécs. XVIII e XIX) (Curitiba, 2019). Docente do IFMT – campus Fronteira Oeste/Pontes e Lacerda. Vencedor do primeiro Prêmio Pixé de Literatura (2019) na categoria prosa.
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PAI E FILHO
Para Dionísio e Tom
Está escuro. É noite.
– Você vai apagar agora?
– Sim.
– É realmente necessário? São as nossas lembranças…
– Sim. É preciso. Apagamos as mais antigas para que as mais novas possam viver. É como a vida, como os homens que viveram antes de nós. Eles partem para que os mais novos respirem.
– Mas não existem mais homens, nem futuro. Nem haverá novas lembranças. Somos os últimos. Tudo se foi, ou está indo…
– No final nada restará, nem as lembranças.
– Nem nós.
O pai manuseia o antigo gravador de voz, com que pretende gravar as impressões de mais um dia. […]. Eles se levantam. Em meio aos entulhos. O pai e o filho buscam pilhas, restos de comida, água. Alguma esperança. Está frio.
– Você se lembra? De como era na sua época?
– Lembro. Mas as lembranças antigas começam a se esvanecer… São borrões.
– E como era? Havia pássaros nas árvores? Havia dias e noites?
– Havia música. Poesia. Sorrisos.
– Música? O que é isso?
– Não… me lembro… exatamente. Era bonito.
Silêncio. Profundo. Sério. Infinito. As aves não voam mais, rastejam; como os peixes, que não nadam nos mares poluídos, cheios de ossos, e se arrastam em meio ao lixo e aos destroços.
– E o que faremos? E se não encontrarmos as pilhas? Como contaremos aos outros, se existirem, o que vimos e o que passamos? Poderemos partilhar nossa experiência de outro modo? E se perdermos todas as nossas lembranças? Se nossos aparelhos fixadores de memórias não funcionarem? Que futuro teremos se nos esquecermos quem fomos? Afinal, o que será de nós sem as pilhas e o gravador onde mantemos nossas existências, pai?
– Meu filho.
Precisamos subir nos postes, nos restos de edifícios e alcançar os telhados. Não é água. É uma mistura venenosa, de lixo, churume, líquidos químicos. Não engula! Prenda e respiração, feche a boca.
A água não serve para beber. O resto que existe no cantil eu jogo em sua ferida. Logo virão os tubarões. Eles voam agora. Têm asas. Foi depois do grande cataclismo. Famintos, eles aprenderam a pular dos mares. Rastejaram sobre a terra, sobre os restos dos restos. Os ratos são como cães menores, sentem o cheiro de sangue fresco. Os insetos também. Eu rasgo minha camisa e enfaixo sua perna com o pedaço de pano. O menino irá vomitar por algum tempo, terá febres, câimbras. Atrás das nuvens escuras, pesadas, formadas por carbono e material radioativo, a lua está cheia. Quase se pode sentir que existem estrelas. São lembranças. Alucinações. Imprecisões. Não lembrava. Não sabia.
Sua cabeça está no meu colo. Ele sua, tem febre. E mesmo assim fala.
– Pai, conte-me uma lembrança sua. Uma que ainda não se apagou e que quase não se recorda mais… uma que está à beira do esquecimento, na margem do abismo fundo do esquecimento. Conte-me de quando o mundo era recente e o céu tinha cores que se podia pegar com as mãos. E de quando os peixes nadavam em enormes cardumes, em oceanos de espuma branca. Conte-me do tempo em que havia música. Quando seu próprio pai o levava para andar em caminhadas sem rumo, sem direção definida, em estradas por onde se podia contemplar os espaços inalterados, os animais em evolução, conservando o frescor do início da vida. […]. Conte-me dos tempos que eu não vivi e ainda assim eu tento lembrar, agarrar com os dedos tortos e quebrados, de unhas sujas, como os desenhos nas paredes descascadas de agora.
Ele chora. Um choro sem lágrimas, calado, interior, quase imperceptível, audível apenas ao coração paterno.
– Meu mundo está dentro de si. Já não me cabe outra coisa, já não me cabe mais nada senão o vazio. Meu mundo está diante de mim. E chora.