Um conto de Val Baminger Oliveira
Val Baminger Oliveira é paranaense, mas mora em Cuiabá. É doutoranda em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso e professora de Língua Inglesa em uma Escola Pública Estadual de Cuiabá. Participa do Grupo de Pesquisas LAALID e está iniciando como escritora de contos e literatura infantil.
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HILÁRIO
O chiclete semi derretido pelo sol quente de verão dava mostras de ter sido pisado recentemente. Mais adiante, um escarro esverdeado lançado ao acaso fez Hilário desviar do seu caminho. Deparou-se em seguida com um formigueiro e divertiu-se observando uma formiga carregar uma folha muitas vezes maior do que ela. Ainda observando sua trajetória, ficou imaginando o que será que elas cochichavam tanto umas com as outras a cada vez que se encontravam a caminho do formigueiro. Ponderou que as formigas sim é que eram felizes, pois apesar do trabalho árduo, tinham amigas para compartilhar a vida. Prosseguindo em seu trajeto retilíneo, avistou ao longe um objeto que reluzia ao sol. Aproximou-se vagarosamente para ver do que se tratava e não ficou surpreso ao ver que era uma moeda, que ele recolheu sem dificuldades, já que estava a poucos centímetros do piso. Era impressionante a quantidade de moedas, botões, chaves e até joias, além de outros pequenos objetos que as pessoas perdiam frequentemente. Para muitos isso passava despercebido, mas não para Hilário, que desde muito cedo se acostumou a manter os olhos fixos no chão.
Mas não, ele não nasceu corcunda. Sua curvatura era o resultado de uma vida de opressão e descaso, que foi se agravando ao longo do tempo e que o fazia parecer carregar todo o peso do mundo nas costas.
Tudo começou no dia do seu nascimento. Sua mãe, que já havia sofrido com diversos abortos espontâneos, finalmente conseguira chegar até o fim de uma gravidez. Porém, logo que ele nasceu ela chegou também ao fim da vida. Talvez por isso o pai tenha lhe dado o nome de Hilário, porque parecia haver certa graça irônica em sua existência. Para ter o filho que sempre sonhou, ele perdeu a mulher que tanto amou!
Mas seu pai amava de um jeito estranho, era um amor cercado de autoritarismo, exigências e violência. No sítio em que moravam, Hilário se tornou o burro de carga. Era sempre ele quem carregava os pesados feixes de trigo e as grandes caixas de bananas que o pai lhe colocava nas costas para vender na feira, porque ele era “jovem e forte”! Era em suas costas já semi-curvadas que as tábuas para a construção da nova cerca eram colocadas para serem levadas até o local onde seriam fixadas. Quando reclamava de cansaço, o pai lhe dizia que não havia razão para isso, que a preguiça era pecado e que ele ia fazer do filho um homem trabalhador!
Assim, desde a mais tenra idade, Hilário aprendeu a manter-se cabisbaixo, não podia encarar o próprio pai, porque era “falta de respeito”. Depois, quando foi para a escola, ele não conseguia olhar de frente para a professora, nem para os colegas, nem para ninguém.
Quando jovem, apaixonou-se. A primeira coisa que viu foram os pés de sua amada. Eram pés pequenos e delicados, como os de uma gueixa. Tempos depois se casaram, mas ela nunca pôde lhe dar filhos. Ainda bem, porque ele tinha medo que ela morresse no parto. Os anos se passaram, o pai de Hilário morreu e ele e a esposa envelheceram. Descobriu que estava certo sobre as formigas, era muito bom ter alguém para compartilhar a vida, ainda que de uma perspectiva diferente. Porém, quando sua esposa faleceu, ele curvou-se ainda mais sob o peso da dor.
Depois disso, Hilário, o corcunda, continuou sua incessante rotina de perscrutar o chão à procura de pequenos tesouros para suas coleções, porque agora, mesmo que quisesse, já não podia mais ficar ereto. Tudo o que lhe restava era o prazer fugaz de juntar coisas. E ele permaneceu assim, como que fazendo uma longa reverência à vida.