Um conto de Veronica Stigger
Veronica Stigger nasceu em 1973 (Porto Alegre/RS). Radicada em São Paulo, tem diversos livros de contos e um romance – entre eles Opisanie świata (Cosac Naify: Prêmio Machado de Assis [melhor romance] da Biblioteca Nacional de 2013; Prêmio São Paulo [estreante acima de 40 anos] de 2014; Prêmio Açorianos [narrativa longa] de 2014) e Sul (Editora 34: Prêmio Jabuti [melhor livro de contos] de 2017).
O conto abaixo é do livro Sombrio ermo turvo (Editora Todavia).
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O fogo
Onde não chove, arde
O fogo se alastrava pelos campos do sul do país na mesma velocidade com que se espalhava pelo interior do seu corpo, como se o seu sangue fosse aos poucos se transformando em magma a percorrer e, ao mesmo tempo, derreter suas veias, os trinta e três por cento de fogo que o constituíam adquirindo naquele momento a materialidade há tanto desejada, o fogo que lhe ardia na alma era da mesma essência que as estrelas, haviam lhe dito, e ele, que odiava os pronomes por estes definirem o que deveria ficar desde o início e para sempre indefinido, já ia tombando rápido sem fôlego e nem tempo para repetir numa justificativa, ou oração, ou mantra, que sim, que não, que ninguém pode mesmo viver sem amor, cambaleou até a janela, tentou olhar o azul do céu e não conseguiu, porque nuvens pesadas de asfalto, nuvens de fim de mundo, o encobriam, tornando noite o meio do dia, uma noite sem estrelas, sem outros astros, sem signo de futuro, e, caído agora no chão em posição fetal, ouvia cada vez mais perto o crepitar da vegetação seca, sem saber que as copas das árvores continuavam a se incendiar mesmo debaixo da chuva que então desabava sobre todos aqueles corpos incandescentes, e, assim, queimando e sangrando como o coração dos homens, não sentiu quando sua cabeça rompeu e dela jorrou uma torrente de lava que, viva, faria arder, mas, em pouco tempo, não seria, também ela, mais do que pedra. Nem menos.
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(Fotografia de Eduardo Sterzi)