Um conto de Vilma Ribeiro Gomes
Vilma Ribeiro Gomes nasceu em Presidente Venceslau, São Paulo, no ano de 1968. Atuou vinte anos como Prof. Fund. I na rede pública de São Paulo e cinco anos como professora de Educação Infantil. Hoje é coordenadora pedagógica e mediadora de leitura na Associação Reduca. Psicóloga e pós-graduanda em Literatura para a Infância pela Casa Tombada, participa dos Laboratórios de leitura Labhum (UNIFESP).
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A CAIXA
Ela sempre gostou da solidão, estar consigo era algo que valorizava, especialmente com a sapatilha nos pés, a música, os passos, um mergulho na introspecção, que emanava até atingir o outro, mas não sem antes envolvê-la.
Hoje amanheceu com esse gosto leve de estar consigo, momentos raros neste presente tão frenético.
…
Seus dias já acordavam velozes, os ponteiros caminhavam na ligeirice da urgência, acordar as crianças, café pronto.
“come filho, rápido… vai se atrasar.”
“mamãe, ontem você disse que era falta de educação.”
“é, eu disse, mas agora não é, depois falamos disso com calma.”
“é que de manhã meu estômago pede pra comer devagar, e no lanche pede pra ir rápido, sobra mais tempo pra brincar.”
“sim, cuidado com o uniforme, não vai se sujar…”
Pensou alto.
“uniforme é o último limpo, de hoje não passa, as roupas sujas se multiplicam.”
“não entendi mamãe.”
Ela já estava longe, as contas, o chefe, os projetos. As chaves do carro? Achou.
“não esquece a lancheira…” Trânsito, uma vaga, milagre.
“beijos, filho, se comporta. mamãe te ama.”
Todas as rotinas merecem ser quebradas, e hoje foi.
Acorda com gosto de si.
Esta semana com gosto de nada e de tudo, entre o Natal e o Ano Novo. O marido foi passar o dia no pesqueiro, também precisa relaxar, o filho foi estreitar os laços com os avós.
A casa só para ela fica aumentada, acorda devagar, com o despertador biológico, o tempo diz a ela que é possível se espreguiçar, solta um longo suspiro que oxigena todas as células.
Até seus pés entendem a lentidão do dia e se demoram a procurar os chinelos, a escovação … diante do espelho observa as linhas de expressão acentuadas, hidrata a pele em movimentos circulares, seus dedos se perdem no fluxo e sua mente circula…
Desperta dos devaneios, e pensa em planejar seu dia.
Desce as escadas e decide não abrir as cortinas, hoje não quer como intruso nem o sol… aquele documentário que todos estão comentando, uma boa oportunidade, sim… decidido.
O controle, as mãos vagueiam à procura, é sempre a mesma saga, o mais provável, na fresta do sofá, mergulha os dedos com calma, um pedaço de biscoito, uma peça de monta-monta, uma caneta, uma moeda.
…
Perde-se dos planos.
Um buraco infinito, o que mais caberia nele? O que se perdeu, o que ninguém sente falta, ou o que foi guardado de propósito para ser achado.
Seus buracos guardariam seus pedaços, restos do que foi. Onde ela estaria guardada de si, onde havia escondida desejos e sonhos?
No tempo urgente de realizar, estaria se esquecendo de ser, não… ela era mãe, profissional, ela era… quem? Era…
Busca no buraco fundo de si…
Num movimento brusco se levanta, os pés não encontram os chinelos, há tão pouco tempo, lentidão e sossego, agora urgência, descalça, aos tropeções escada acima, pés que levam, precisam estar descalços.
Corre para o quarto, abre violentamente a porta do guarda-roupa, onde guardou, onde? A Caixa, maldição, quantas caixas, não… essa não, aquela não era dessa cor, no atropelo, despencam as caixas, que não eram… precisa da que havia sido, acessa a memória, a cor, o tamanho, está em cima, arrasta a poltrona, escada? Não há tempo…
Desarruma a ordem das caixas, e nessa desarrumação, desarruma a vida, no fundo… a Caixa… A fina camada de poeira não chega a esconder, a camada do tempo quase.
Guarda-se?
Desembrulha a sapatilha, ainda sabe do ritual, preparar os pés, a sapatilha surrada, ela surrada também, mas ainda sabe da sapatilha, sabe de si.
A música, ouvida sem ser tocada, os passos, o sangue pulsando, está viva, ela e a sapatilha, gastas e vivas.
O corpo reconhece os movimentos, guardados, mas não esquecidos. Ela e a sapatilha, ela e a música. Ela e o corpo. Ela e ela… ela…
O telefone toca, toca sem ser música, a avó, o filho, a febre.
“estou indo…”
“rápido.”
“chego logo.”
Descalça… fecha a Caixa, guarda, se guarda com a sapatilha.
Tranca sua Caixa de Pandora, para esperança não escapar.