Um conto de Vítor Oliva
Vítor Oliva mora em Montes Claros, norte de Minas Gerais. Esteve no Coletivo Sapiens Marginalis, no Derivantes Delirantes e participou em publicações de zines e antologias diversos. Escreve poesia, conto, dramaturgia e tem projetos em construção de romances. Também compõe e esboça projetos audiovisuais com amigos e artistas locais. Está preparando a publicação de seu primeiro livro, À Espera de Caronte.
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LILITH
Como de costume, às 5:30 da manhã, Lilith despertou. Olhou para o lado, viu o marido em sono profundo, roncando para os anjos ouvirem, e emitiu um leve sorriso. Ainda sonolenta, caminhou em direção ao banheiro, fechou a porta e pôs-se a se olhar no espelho. Delicadamente, moveu com os dedos rígidos o cabelo para o lado. O mesmo hematoma logo abaixo da têmpora; o corte na extremidade do lábio, já formando uma casca; a mesma face soturna, evidenciando uma alma que fora apedrejada pelos golpes aparvalhados da vida. Aparentemente, tudo no lugar. Sempre tentava se recordar de seus sonhos, mas eram sempre lembranças desvanecidas, de difícil constituição. Não obstante, o dia anterior sempre se passava de forma nítida e detalhada pelas suas retinas. No espelho, ela enxergava, como num filme, tais lembranças, e estremecia. Normalmente, era esse o momento em que procurava deixar as imagens se debatendo no cristal iridescente e saía em direção à cozinha, mas dessa vez gastou mais alguns minutos observando a cena. Estranhou a si mesma, sentindo que de alguma maneira estaria quebrando um protocolo. As paredes do banheiro pareciam se encolher, fazendo-a sentir uma leve tontura, mas procurou se conter. O vidro do espelho, como se não suportasse mais o ato que se passava em seu interior, principiava a rachar. Lilith sentiu um extremo desconforto e uma náusea dominando vertiginosamente seu organismo. Em passos apressados, porém sem perder a elegância, caminhou em direção à privada e expeliu um vômito colossal. Por algum momento, a amargura repentina que lhe tomava correu descarga abaixo junto aos excrementos. Mas, ao postar-se novamente de pé, percebeu que se tratava de ligeira impressão. Caminhou de volta à pia e lavou a boca. Ao levantar a cabeça e olhar outra vez ao espelho, não enxergou nada além da própria face, e, agora, a amargura se mesclava com uma difícil capacidade de assimilação, mas sentiu uma leveza que há tempo não sentia, e um sentimento de grandeza o qual causou-lhe certa confusão. Preferiu deixar o banheiro, afinal, tomar uma atitude incomum não parecia ter surtido efeitos positivos.
Lilith não tinha filhos. O médico dissera qualquer coisa a respeito de uma baixa produção de óvulos, alterações tubárias, ou coisa que o valha. Não que a mulher se preocupasse com isto. Desde a infância, o pai a fazia se sentir um estorvo, apoiado em crenças antigas de que criança não se tratava de gente feita, portanto, deveria sempre se ausentar ou se calar. Não era um lar indulgente. Crescendo com este trauma, junto aos demais que sobrevieram, rejeitou qualquer possibilidade de ter filhos, visto que resguardava um certo receio de propagar a mesma atitude contra os seus, já que nunca fora muito capaz de conter seus impulsos. O mesmo médico poderia ter dito que seria uma deficiência no lóbulo frontal, não sendo dotada de uma boa capacidade de inibir suas condutas. Lilith chegava a quase considerar uma benção sua deficiência ovularia, já que condizia com sua vontade, não fosse por um motivo: o marido, deveras carrancudo e ignorante, não se adequava à ideia, assim como mal se adequava a qualquer coisa, e, vez ou outra, também não conseguia conter certos impulsos e agia de forma desagradável – usando de uma boa dose de eufemismo – talvez por também possuir uma deficiência no lóbulo frontal ou algo equivalente. A mulher se atormentava por este fato, ao mesmo tempo em que se martirizava por sentir um tormento qual advinha de um fator que considerava desimportante. Mas, como que por amor ao marido, se cruciava, e sentia que não poderia mudar isto. Então, tomada pela importunação costumeira, se dirigiu à cozinha.
O velho copo de alumínio pousado no mesmo lugar. Encheu-o de água e ligou o fogo, posicionando-o na única boca do fogão que ainda funcionava. Normalmente, era esse o momento em que varria a pequena casa enquanto a água fervia. Tomou em mãos a vassoura, mas não se deu a varrer. Recostou-se numa cadeira ao lado do fogão e aguardou pacientemente as borbulhas aparecerem. Teve pensamentos desconexos, e, em meio à perturbação, desligou o fogo. Sentindo uma taquicardia incomum, um suspense que paulatinamente começava lhe dominar, se levantou e voltou em direção ao quarto. Encostou-se na esquadria da porta e observou o marido. O homem, deitado de barriga para cima, com os braços e pernas esparramados na cama, parecendo querer tomar por completo o ambiente, emitia roncos cada vez mais estridentes. Uma barriga de causar inveja em qualquer barão, mas um ar de decadência moral de causar incômodo em qualquer seminarista possesso. Era um achaque personificado. O olhar soturno passou a se mostrar também descontentado. Diminuído o suspense que solavancava em suas entranhas, passou a crescer no pobre cerne da mulher uma tristeza que soava arrependimento. O marido, há muito tempo, não a desejava, e não a fazia sequer se sentir desejada. O ato carnal era raro e, quando acontecia, tangia a um esforçado obséquio. Durante quase um par de décadas em que estavam juntos, sempre fora assim, e Lilith começava a se perguntar o porquê de tamanha abnegação. Sempre fora bastante compenetrada e honesta com seus sentimentos. Não fingia amor, nem desejo, sequer companheirismo. Somente os demonstrava porque ainda havia. Mas sentia uma dificuldade terrível em aceitar que o homem com quem escolheu construir sua vida amorosa não fizesse o mesmo. Para ela, fingir um amor que não fosse verdadeiro era possível, mas a não demonstração de algo supostamente sincero era sinônimo de inexistência. Entre estrondosos ruídos que saíam da boca do marido, interrompidos por pequenos intervalos de engasgos, retornou à cozinha.
Acendeu um cigarro, sentou-se novamente à beira do fogão e manteve-se pensativa. Cada trago trazia uma velha lembrança, as quais alternavam as sensações entre boas e ruins. Cada suspiro regado a fumaça, era carregado de um alívio ou de um breve sorriso remitente. Se recordou de sua formatura na pré-escola, onde sentiu pela primeira vez o calor de outros lábios nos seus, mesmo que de forma inocente; das caminhadas com a mãe pela orla da praia; das aulas de bordado que recebera da avó; da difícil época de sua vida, quando cursava o ensino médio, onde perdeu o pai, torturado antes de ser morto pela milícia, conhecendo então seu alicerce, que neste momento dormia grunhindo em um cômodo ao lado. Se tornou devota de Santa Rita de Cássia quando sua avó lutava contra uma doença degenerativa, estendida num leito de hospital que já lhe parecia imanente. Orou ininterruptamente durante dois meses, mas não obteve o retorno desejado. O último bordado feito pela avó fora pendurado ao lado da imagem da santa, num pequeno santuário doméstico que mantinha na casa. A avó, em seus últimos dias, já não dizia palavra, portanto pareceu querer dizer as suas últimas no sacro pedaço de pano. Em letras distorcidas, num tom de vermelho sangue – intencionalmente ou não – lia-se: resista.
Lilith conteve suas lágrimas, ligou novamente o fogo e se dirigiu ao santuário. Num canto da casa, em cima de um pequeno móvel de madeira, estava a imagem da santa ao lado do bordado, uma rosa e uma vela apagada. Acendeu a vela e pôs-se a orar. Entoou um velho cântico, numa voz doce mas entrecortada por uma rouquidão lamuriosa. Terminadas as orações, ficou balbuciando em meio a um olhar tristonho. Nem ela própria conseguia compreender bem o que dizia. Pensava de modo devaneador mas razoável, como que buscando uma compreensão repentina que clareasse o pensamento – como ficamos quando assimilamos algo mas permanecemos sem a capacidade de explicar. Parou de falar. O olhar soturno, fixado na imagem benta de Marguerita, passou a ganhar uma tonalidade melancólica. A mulher, taciturna, entrou num transe de aborrecimento, desatando as mãos, outrora trêmulas e entrelaçadas, e ficando imóvel. Não precisou olhar ao redor para visualizar perfeitamente em seus pensamentos a imagem da ruína em que vivia. Sua vida, mais que sua casa, se tornara um descalabro. Ouvia-se, neste momento, o alvoroço das empolas de água se debatendo no alumínio. O desespero contínuo das moléculas, que pareciam vir à superfície pedir socorro, enquanto o borbulho parecia sair do copo e entrar em sua mente. A água estava fervendo. Suava frio, materializando no intermédio de espaço entre ela e a santa, os infortúnios de sua vida que a levaram àquele lugar. Cada ação ou omissão, cada risco ou deserção, tudo o que fizera durante sua vida, servira unicamente para que ela estivesse ali naquele momento, diante de um pedaço de gesso, contemplando a calamidade catastrófica dos seus flagelos. Sentia que cada estigma, mental ou físico, fora merecido.
O vapor já se arrastava pelas paredes. Lilith, num ato impensado, pegou a rosa, analisou seus espinhos, e buscou um que estivesse mais aguçado. Lentamente, fê-lo passear pelo meio de sua testa, deixando escorrer uma fina gota de sangue. Era a marca da redenção. Posicionou novamente a rosa em seu devido lugar, abandonou o pequeno santuário e voltou à cozinha. Olhou pacientemente, por alguns segundos, para a tortura desenfreada das moléculas. À medida que o líquido efervescia, sua alma se resfriava. Um singular sentimento de crueldade se misturava a uma estranha sensação de sede, sabia-se lá do quê. Um sorriso singelo brotava no canto da boca, e começou a sentir que seu corpo estava se esvaindo. Sobrara-lhe apenas os pensamentos doentios, que cresciam de uma forma diligente e vulgar, em frente ao fogão. No momento em que já não sabia se estava junto ao corpo ou junto à mente, tomou em mãos um pano para segurar o copo, a fim de não se queimar. Vagarosamente caminhou até o quarto, e observou por mais um curto momento o marido, em meio ao desfalecimento do restante de sua sobriedade. Se pôs de pé ao lado da cama, e olhou sordidamente para o semblante grotesco que o homem revelava. Seu olhar se misturou a tal semblante, e, num gesto sucinto, subiu na cama de joelhos e apoiou o quadril no busto do marido. Imobilizando seu tórax, com uma das mãos segurou firmemente, mas não de forma rude, aquele rosto, virando-o cautelosamente para o lado. O sujeito não esboçava sinal de reação. Estava em sono profundo. A outra mão, que segurava o copo fervente, pareceu se aproximar da face do pobre homem sozinha e, num ato quase que inconsciente, molificou-se e começou a derramar o líquido em seu ouvido. Num susto apavorado, o homem acordou já se debatendo, mas Lilith segurava seu rosto com mais força e imobilizava seu corpo de maneira que não lhe havia muito o que fazer, a não ser bramir de dor num delírio onírico. A água ia descendo minuciosamente em direção ao orifício, a fumaça de vapor tomava o quarto, e o homem, gritando desesperadamente, tinha a sensação de que seu tímpano rebentaria de forma concisa a qualquer momento. Com a feição cada vez mais rubra e as veias querendo saltar a cara, o homem praticamente resignou-se em meio ao ato, e seu agitamento foi diminuindo. De olhos arregalados e tentando exprimir seus últimos ganidos, parou de insurgir, e o corpo já não respondia mais a qualquer tentativa de reação. Estava extremamente vermelho, num tom púrpuro, e, na mesma posição em que prestava seu sono, olhava fixamente para a parede, sem saber exatamente para o que estava olhando, respirando pesadamente e gruindo em baixo tom, como que buscando entender o que se passava, ou quem sabe uma última luz a que se olhar. Já não se sabia se o homem estava consciente de suas faculdades mentais, ou se a razoabilidade ainda se fazia presente em alguma escala. Somente sentia a tortura repentina já rendido. Despejado todo o líquido, e vendo que o infeliz já não resistia, Lilith jogou o copo vazio ao chão e saiu de cima dele. Voltou à cozinha, ainda meio desarranjada, mas com um ligeiro sentimento de triunfo. Numa pequena despensa coligada à cozinha, ficava um botijão de gás. Não o de uso rotineiro, mas o que ela, mulher cuidadosa que sempre fora, mantinha de reserva. Foi de encontro a ele e segurou resolutamente as bordas. Arrastou-o, com esforço e certa dificuldade, através da casa, até chegar ao quarto. Utilizando uma das pernas e levantando o recipiente veementemente, num impulso conseguiu colocá-lo em cima da cama. Subiu novamente no leito do crime, mas desta vez de pé. A mulher estava ofegante, com os finos cabelos se sobrepondo ao rosto. Inteiramente pálida, com uma feição definhada, olhando de forma sombria, mas com êxito para a figura à sua frente. Utilizando-se de suas últimas forças, ergueu o botijão até onde pôde para cima e, concomitantemente ao último suspiro do marido, largou-o livremente. O som que se produziu com a pancada foi abafado pelas almofadas, e o botijão se esgueirou chão abaixo, provocando, num estrondo subsequente, uma rachadura na langorosa madeira que compunha o piso. Não obstante o amortecimento do golpe, a face do pobre homem restou desfigurada, com uma grande abertura na lateral, expondo pouco da massa encefálica e escorrendo um sangue viscoso qual tomava os lençóis. Lilith sentiu uma certa satisfação por não mais reconhecer o marido, e ser impossível de reconstituir a imagem de seu rosto em sua imaginação, visto tamanho estrago causado. Agora era somente um pedaço de carne sangrando em sua cama. Todas as más lembranças, por um momento, pareceram ter se dissipado junto ao vapor do líquido mortal que evaporara.
Tomada de um delírio e ainda não conseguindo mensurar o próprio delito, calmamente desceu da cama e foi em busca do copo de alumínio. Dirigiu-se à cozinha e o encheu novamente com água. Desta vez uma água pura, desprovida de sentimento de vingança. Ademais, já estava feito. Sentou-se na cadeira e acendeu outro cigarro, e com o mesmo fósforo ainda flamejante deu vida à nova chama na velha boca do fogão. Preparou o açúcar e o pó do café e aguardou que a água fervesse. O que se deu a partir daí, foi tal qual a alma de Lilith após este fato: eterno mistério.