Um conto de Zeh Gustavo
Zeh Gustavo é morador recente de Cuiabá, autor de Eu algum na multidão de motocicletas verdes agonizantes (Viés, 2018), de onde foi retirado este conto. Outras obras: Pedagogia do suprimido (Autografia, 2015), A perspectiva do quase (Arte Paubrasil, 2008), Idade do Zero (Escrituras, 2005). Administra a página Zeh Gustavo.
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O pessoal com quem eu trabalho me recomendou um médico mas ele veio a falecer
É um dia, um dia apenas. Pode ser o último. Na verdade, é um dia depois do outro e você tá ficando velho. Velho pra cacete. O menos mal disso tudo, meu velho, é que, quando o processo começa, as mulheres admiram, se achegam – as mais jovens. Aquilo é um fio de maturidade num corpo ainda são. Em tese. Elas caem na teia, mas você bebe muito.
A porra do seu corpo, não a porra propriamente dita, mas a porra de vida que seu corpo tem não jorra, começa a doer com tudo. Você vai ficar doente. A cada dia. A cada dia uma nova dor. Tirando a sua cabeça que envelhece de fantasmas e ruídos e poeiras e ressacas. Por enquanto você está ficando, mas um dia você vai.
Tudo em mim doía, sobretudo as tripas. Mas o coração sempre preocupa mais. Aí o pessoal com quem eu trabalho me recomendou um médico. (Posteriormente, ele veio a falecer.)
– Você bebe muito.
Esse dr. Capa Branca sabe iniciar uma amizade!
– Já vi melhores.
– Assim o senhor vai mal…
– Posso ir, mas por que não você?!
Aquilo era uma consulta médica. Eu jamais pensara antes em matar um médico, pensara? O paciente, a se impacientar… Ê, pensamento!
Eu ando muito confuso, ultimamente. Eu sempre estive muito confuso, mas não desse jeito. É o acúmulo das coisas. E eu parei de fumar. O médico fuma, eu sei. Fuma escondido. Vive escondido. Não gosto dele. Que se lixe!
Nunca matei um médico, já matei? Eu bebo muito. Fato. Não bebi hoje, estou são, amém. Não, eu estou nervoso. O fato de eu não ter bebido nada hoje e o médico dizer que eu bebo muito para mim é provocação. Médico babaca! E é assim que as coisas acontecem: você é tratado como mais um número na estatística, até que cisma de colaborar para ela, a estatística. Mais um, menos um, noves fora não sobra nada. Aí o dr. Capa Branca vem e resume:
– Você bebe muito.
Você odeia doutores como o dr. Capa Branca e já matou um homem, não matou? Você conhece o dr. Capa Branca não é de hoje e você sabe, você sabe… Ele vai receitar um tratamento escroto. Para você não morrer. Mas você vai morrer, você sabe, então…
– Essa é a sua dieta. Qualquer dúvida…
– Nada mal.
– Note bem, é pra seguir à risca.
– Doutor, posso pôr vinagre nessas folhinhas que o senhor botou para enfeitar minha janta?
Não gosto de vinagre. Posso enfiar as folhinhas no seu rabo, doutor? Ele não ri. Dr. Capa Branca não ri para não dar confiança. Só ri escondido. Dr. Capa Branca tira meleca e coça o saco, escondido. A gente não gosta da ideia de perder para a morte, mas a gente perde, doutor. A vida inteira. Justo eu tenho que lembrá-lo a respeito? Fica nada no lugar, nada da gente. E os lugares vão ser preenchidos, outros locaotários. E os próprios lugares vão trocando de lugar. Por que tô falando tudo isso? Dr. Capa Branca faz tudo escondido, eu bebo muito e vamos todos morrer. Estou mesmo ficando velho!
– Não precisa me olhar com essa cara. É só uma dieta!
Eu vou matá-lo, já matei?
– O senhor tem família?
– Já enterrei duas.
– Como?!
– Já enterrei duas mulheres. Tá meio fora de moda mas sou hetero…
– Compreendo.
– Não, não compreende.
E ataquei minha história, agora bem-disposto. O jogo virava.
– Matei as duas. E também meu único filho. Ele peidava muito! Odeio cheiro de peido.
E… ele peidou. Cagonildo Capa Branca, ex-doutor, ora posto no seu devido lugar de mortal, me descobria um perigoso… O peido era uma metáfora fedorenta. Artimanha suja, a minha. Necessitava então tranquilizar o doutor, lhe restituir a superioridade mesquinha que um diploma e uma sociedade doente são capazes de atribuir a um sujeito comum. Para tanto, teorizei, bonitamente:
– Dotô, o peido é apenas um entrelugar, dentre tantos, fluido divisório entre o ar dito puro e o cheiro da merda, a nos empestear. No fundo somos todos essa mesma merda, o senhor sabe, né?
Ele não sabia. E não seria a vida apenas um intervalo, entre nadas, mijos e merdas?
– Bom, tenho outros pacientes.
***
Deixei o dr. Capa Branca, defronte à sua mesa empapada de suor. Seria o suor um outro entrelugares?!
Me arrefeci de lá, carecia de um trago. Tava fedendo a éter de consultório. Eu nunca tomei banho de éter após uma consulta médica, já tomei? E após morrer e matar, matar e morrer?!
Quanto aos trabalhos de bar, parei na terceira dose. Também ando meio fustigado. Fui embora para uma casa que não tenho, muita dor. A morte só interessa uma vez mas a gente sempre se interessa pelas demais, muito embora receita com folhinha só sirva para o rabo alheio.
Ouço sirenes, ouço coisas, tenho tremeliques, me perco na rua. O barulho da cidade não tem fim, mas com o tempo fica opaco. A noite é que sempre promete ser mais longa, você sabe.
(Crédito da foto na homepage: Rozana Lemos Lopes).