Um conto e três poemas de Kátia Bandeira de Mello Gerlach
Kátia Bandeira de Mello Gerlach, natural do Rio de Janeiro, é escritora, poeta e artista visual radicada em Nova York desde 1998. Seu trabalho é fortemente marcado pelo movimento surrealista e pela patafísica. É curadora da Revista Philos. Os seus livros, dentre eles, Colisões Bestiais (Particula)res, são publicados pela Confraria do Vento. / www.katiabandeirademello.com
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Siamesas
Foram as meninas gordas do 201 que vieram bater a minha porta e entregar a carta, o que estranhei porque cabia ao carteiro essa função e não às duas irmãs grudadas à espera de uma operação cirúrgica que as separasse em definitivo. Faltava o desligamento dos braços, algo aparentemente superado pelas duas, que não conheciam a vida em diferente e a felicidade mora no que se conhece, os humanos são criaturas de hábito, as repetições lhes dão sossego, enchem o coração de um mar sem ondas e incluo-me nesta categoria de obstinados por rotinas.
A poucos metros do edifício de quatro andares, virando a esquina, havia um comércio, incluindo a loja de balas onde as meninas compravam bolas vermelhas de chiclete que mascavam enquanto sentadas nas escadas da portaria. Às vezes, com o trânsito atrapalhando o par indiferente ao resto do mundo, elas rabiscavam o asfalto com giz e escreviam palavras que elegiam pela primeira letra que costumava ser a letra E, gerando uma lista como elástico, elefante, educação, eu, ela, ele, havendo pego emprestado na biblioteca um livro quase ilegível por excluir a letra e, cujo autor se chamava P-r-c. A família das siamesas se mudara, quando a sede tomou o país onde viviam. Nos últimos vinte anos, o êxodo por conta de falta d’água trouxe estrangeiros para essa cidade. Os refugiados da seca circulam pelos continentes em busca de lugares com chuvas e água doce.
O desespero aumenta progressivamente. Até agora, tive sorte, nunca me faltou um copo d’água por dia para que me mantenha minimamente hidratado.
A carta que as meninas me entregaram sem chegarem a atravessar a soleira da porta, com seus rostos redondos sob máscaras de algodão, os olhos castanhos arregalados como de corujas, cheirava a carne, levando-me a supor que o remetente era o açougueiro halal enfurecido desde que me transformei em vegetariano e esqueci de pagar pelo último bife de filet mignon, o recibo tendo ficado pendurado num dos ganchos usados para suspender os animais em peças quase inteiras, pingando sangue. A minha dívida servia de exemplo para outros fregueses que ameaçassem pendurar a conta e se convertessem ao vegetarianismo (a crise levava a crer que os açougues teriam que se restringir a vender carne seca, ou carne de sol). Ignoro se o verbo “converter-se” se aplica ao ato de abdicar de alimentar-se de carne; vegetarianismo não chega a ser uma religião mas contém duas letras “e” e se encaixa no vocabulário das meninas e no livro de P-r-c. Posso apenas dizer que mudei as minhas convicções alimentares: pisar no açougue ou aproximar-me do açougueiro me revolta o estômago. Fiquei de enviar um cheque pelo correio mas esqueço das promessas que faço com frequência.
Andei lendo que os atos da Natureza são cruéis e atrozes, que assim ela avança e sobrevive, enquanto eu prefiro enxergar o parnasiano das coisas. Mastigo as folhas de verduras com lentidão para não ferir as plantas, ou morder a minha língua.
Após dar as costas às meninas, abri o envelope lambuzado e li a fatwa que me era decretada. Não era uma fatwa pessoal como a que recebera o escritor Salman Rushdie muitos anos antes. A mensagem cifrada anunciava o fim coletivo do mundo. Uma série de bujões de gás começaria a explodir e orquestras de terroristas calcinariam as vegetações desérticas restantes da terra.
Estávamos por um triz.
Confirmando a ameaça, antes de abrir a porta para as meninas que surgiram demoníacas na curta memória dos passos entre a porta e a poltrona, eu vira, na televisão, a misteriosa explosão de uma usina nuclear iraniana. Também fora no Irã que surgiram as primeiras imagens via satélite de cemitérios abertos na primeira metade do século XXI durante uma epidemia prematuramente chamada de peste mas que não chegara a matar o quinhão de um milhão de habitantes eliminados com a rapidez da gripe de Hong Kong em 1968. Naquela época, os movimentos estudantis não serviram sequer para abolir os sutiãs das mulheres. Uma coisa eu digo, a gente olha na tela aquele monte de gente protestando, acreditando que marchar nas ruas leva a mudanças e daí repara ao redor, abre a janela e bum: os elefantes da Namíbia se espalharam pelo mundo porque sabem sobreviver em desertos e nós, não.
Quando uso nós refiro-me a mim, um infra-realista meta-heremita, solteiro feroz por solidão. O deserto não fica tão somente exterior a mim, a aridez escava os meus músculos cardíacos e acelera a evaporação dos fluidos que circulam pelo meu corpo. O mesmo deserto que tomara as montanhas que haviam abrigado a mata atlântica e seu carnaval de pássaros coloridos. O homem que enxergo no espelho ao aparar a barba se transforma, na verdade, em múmia.
Havia pouco tempo para agir. Pouquíssimo! Com um otômetro na mão, medi a extensão das chamas, para onde o fogo das explosões se alastraria. O aparelho indicava no painel eletrônico milhões de quilômetros percorridos pelo calor. Fora assim que Califórnia, Portugal e Austrália haviam desaparecido do mapa, os milhares de incêndios intercalados arrasando casas, gente, animais, florestas.
Com a carta enfiada no bolso, pensei que precisava de dez ítens para o fim do mundo, sem contar a máscara N95 que me protegeria do apocalipse se acaso a encontrasse já que escondia as coisas de mim. Juntei alguns objetos de utilidade e afeto que estavam à mão: uma sacola de algodão com o logotipo da livraria Strand Bookstore, o termômetro, uma antiga foto desbotada num porta retratos de família, o livro de versos de Brodsky, uma garrafa térmica com café pela metade, um relógio de bolso, um coração de porcelana com um laçarote no lugar da aorta, algumas peças de roupa e o travesseiro de espuma que prevenia torcicolos moldando-se ao pescoço, um caderno e uma caneta de pena. Não me apegaria a nada mais.
Eu não tinha ideia para onde ir, enquanto a fumaça cobria o bairro e se ouvia as pegadas dos elefantes e seus grasnidos. O cheiro de couro queimado asfixiava, entrando pelas frestas das janelas do apartamento. Os flashbacks da minha infância projetavam-se no cérebro como se Poe houvesse instalado a Máquina de Fazer Escuridão dentro do meu crânio. Recordei-me do pavor dos meus pais em 2020 quando noticiaram a nossa fuga da cidade para o campo, evitando descrever os detalhes dos corpos mortificados no bairro de imigrantes onde morávamos. Havíamos nos salvado daquela tragédia apequenada pelo que se sucedera nas décadas seguintes.
As cenas se sucediam sem pudor e rodopiavam pela minha cabeça, voltava-me a visão das meninas estrangeiras batendo na porta, um homem múmia sentado com um pote de folhas de couve frita no colo, as ondas da praia encolhendo até tudo virar areia, as árvores se retraindo e se transformando em miragens, os pequenos oásis que espelhavam o brilho do céu e nos davam alguma esperança, a noite em que perdi a virgindade e desnudei uma mulher, a primeira mesa escolar onde me sentei e senti medo da professora a ponto de tremer, a mulher que amei com inocência e me largou por um dos programas espaciais do conglomerado SpaceX Musk por acreditar em vida além da estratosfera da terra, a mania que eu tinha de olhar para o céu e buscá-la num dos pontinhos que brilhavam soltos na noite, o último orgasmo enquanto me masturbava inspirado por fotos de uma desconhecida na tela do celular, uma mulher quase tão seca como eu, sem pele, estéril, o meu desespero para que ainda saísse algum líquido de mim, o calor me envolvendo, o espanto da morte se confundindo com o espanto do sexo, os objetos largados na sacola de algodão da livraria, o rosto da Suzana uma vez mais, o beijo que lhe dei na nuca, a nuca da Suzana ao cortar legumes sobre a pia, as meninas atadas uma a outra pelos braços a correrem em direção ao sol, mancando, derretendo como bonecas de porcelana.
*
Você acorda e empurra
A matéria inerte
No apuro dos olhos crescentes
Desde ontem os seus olhos
crescem sem parar
abalados pelos frêmitos das pestanas
Estão emergindo da lama
alguns dos seus monstros
que você nomeia em sequência,
todos literários, no surto
da matéria inerte e mole,
um não sei o que,
esfregam entre as mãos, o sangue,
jorra saturninos jatos.
A mãe veio se despedir
nos sonhos de noites ainda piores,
o seu corpo não dá vazão
aos líquidos que estouram
a imagem sedimentada
pelos passos de um crocodilo-do-nilo,
espécie invasora deste novo pântano.
*
Os rostos do homem foram se subtraindo
dos ombros da estátua
Cem vezes morta de medo
Spleen e tempo passados para trás
Charles B. hospedado no hotel Lutéce
de poetas delinquentes
tocavam-se todos porque era preciso
aquecer as peles e os trajes
de mão em mão sobre o grito:
a melancolia mata mais
do que morcegos, moscas ou mosquitos,
enormes monstros literários esbravejam
no auge dos mortos vegetativos
sobre as camas de hospedeiros aflitos
afundados invisíveis em orgíaca matéria negra,
para apressar a vida lenta,
os dias se levantam sobre melancolia ainda mais forte
sou eu, disse o rosto que sobrou
do poeta de ponta cabeça,
com o baço exposto, ensanguentado
sou eu, mil memórias, e a estátua sonhando,
sonhando que havia sido humana
percorrendo, como um antigo verso sensível,
uma bela silhueta de amor e mármore.
*
O amanhã veste roupas mínimas
Quatro astronautas saíram do tempo
Também os três jogadores de golfe
Já não se faz mais nada sem uniformes
Repare na célula que veste o pensamento
Quem rasgaria a sua membrana,
como a unha rasga o seio
o esquerdo, o direito, o seio do meio
Começam a brotar mulheres em três
O terceiro seio tríade de olhares
Alma em cópia, cópia da testa.
O motorista de ônibus em macacão azul
usa o espelho retroativo
para localizar as tramas
dos seres transportados
para a lua, ou o campo de golfe.
Ele está todo dia na luta,
considera-se bom e lúcido,
de mente atenta à morte,
às roupas mínimas que veste o amanhã
e à desproporção do 4 para o 3.
Cérbero, meio cão meio dragão,
à guarda do inferno, quase não usa
as suas três cabeças,
cada qual tão tenebrosa.
Kátia Bandeira de Mello Gerlach
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(Fotografia [detalhe: Matias Gerlach)