Um conto inédito de Adriano B. Espíndola Santos
Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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– O sonho marginal –
No delíquio dos meus passos largos, alcanço algo além do nirvana, se quer saber. É a frase que falo aos impressionados andantes, abobalhados com o natural – o que não passa do ínsito sentimento de plenamente existir –, e doidos para me estrepar.
Passar, eu passo pesar, nessas estradas tortas. Por isso, e tantas outras coisas – que é melhor não contar –, me afasto de vestígios humanos. Sou do tipo que não faz questão de viver em alcateia. Não que eu seja uma ovelhinha, longe de mim, mas não me misturo com lobos, sedentos por sangue. Quero viver e deixar os outros viverem. Já fui, quantas vezes, jogado, literalmente, no mato, no acostamento, por motoristas desumanos, inescrupulosos; ao receber o tom estridente diretamente nos meus tímpanos, já surrados – os malditos esperam chegar bem perto, apertam-nos e se divertem com o susto; saem gargalhando, quando não, filmando o ocorrido.
Já pensei, sinceramente, em sair dessa vida porque não tenho mais ânimo para lidar com esses “inconvenientes”; contudo, quando fui a Arcoverde, onde minha irmã mora, para visitá-la – a ela e aos meus sobrinhos –, pela circunstância, tive de ficar alojado num quarto apertado – para a minha percepção, um quarto de vinte a vinte cinco metros quadrados é apertado; uma casa me dá claustrofobia, para ter noção –, e me contorciam os nervos o fato de esperar a hora mais propícia para dar no pé. Não sei o que me acontece, mas, posso dizer com segurança, nasci como um passarinho, livre, em que ninguém pode pôr anilha no calcanhar; vou com tudo em busca do sol, do ar puro, da minha liberdade.
Não me demorei muito ali, foram talvez três a quatro dias, com minha irmã na cabeceira da cama ou do sofá me pedindo para ficar; que eu não iria pagar nada; que ela sofria muito com a minha ausência, sem saber se estava com saúde, vivo; que eu ficaria tranquilo ao seu lado até dar um jeito na minha vida. Como, se minha vida está ajeitada? Rejeitei, de cara. Mostrei-lhe um montinho que fiz no chão da sala, para dormir; a cama de casal não me cabia, tinha espinhos – era uma sensação horrenda. A gota d’água foi quando ela disse: “Meu irmão, isso é um monturo! Você pode mais!”. De madrugada, antes do galo cantar, saí, e deixei na porta um bilhete para declarar o meu imenso amor por ela e pelas crianças. Enfim, espero que um dia me compreendam.
Tratam-me como marginal, no pior sentido. O marginal pejorativo, de descarte mesmo. E eu sei, só eu sei, que não sou marginal. Estou à margem porque quero, definitivamente. É uma opção de desapego, liberdade; será que é tão difícil entender? Mas também me cansei de explicar. Sou como um ancião peregrino, o tal do Luigi Cianti, que vi na televisão, lá das bandas da Espanha; não tão parecido assim, a não ser pela mensagem de amor, porque ele doou cinco milhões de euros, e eu nunca tive nada. Sou um passarinho, não posso carregar mala.
A minha guarida, do coração, é a Duck, uma cachorra-pata – não tem nada de Duque, Duquesa, como já perguntaram, essas coisas de nobreza, distinções, me enojam. Quando a encontrei, estava se banhando na Lagoa do Meio, sozinha e feliz. Uma das minhas. Nossos olhares se cruzaram, enquanto apreciava seu nada, leve e contente, de balançar o rabo e respingar água; um verdadeiro balé aquático. Sorri. Ela, serelepe, ao me reconhecer – de outras encarnações, possivelmente –, trouxe um peixe e largou no chão, na minha frente, então supus que seria para comermos. Arranjei uns gravetos secos, preparei o terreno, e acendi o fogo, com muita dificuldade – não podia deixar passar aquele momento. Dali em diante nos tornamos grandes amigos. Do assar à refeição, trocamos chamegos e olhares; um encontro de almas.
Além de tudo, para completar, é exímia caçadora a danada; e eu sou o seu chef, com o maior prazer. Óbvio que minha “cozinha” é experimental; no entanto, pude oferecer grandes banquetes nessas jornadas. Cozinhei, por exemplo, para o Manu Chao, na praia de Canoa Quebrada, no Ceará. Tivemos uma tarde agradabilíssima, conversando sobre o prazer da liberdade. Nesse dia, o mais importante, além do encontro transcendental, foi a renovação; renovei a compreensão do mundo, meus sonhos, ideais. Manu Chao é desprendido, desambicioso; não fosse me confidenciar sua identidade, ninguém ali o teria reconhecido. Seguimos viagem no dia seguinte, uma terça-feira do mês de março de 2013, cada um para o seu lado, com um bocado de sonhos na cachola para provar.
Ainda não esqueci o velho bruxo, o Raulzito, que inspirou uma geração, com sua crença no alternativo. Eu, em parte, me sinto vitorioso por compactuar de sua essência, e pô-la em prática. Não vivi bem em comunidade, porém, se precisar, compartilho com os manos do corre, no manguear, na divisão do pão. Comigo ninguém passa fome; é capaz de faltar para mim, se quer saber.
Duck se foi na última quarta-feira, se não me perdi nos dias da semana. Uma partida santa, como morrem os passarinhos – desconfio, um sopro. Não deu sinais. Não pediu ajuda. Os parceiros acham que deve ter sido do coração. Imagino que não quis me preocupar, mas talvez estivesse sentindo dor. Algo de diferente percebi nos seus olhos, levemente baixos, e pensei que era de reverência, agradecimento pelo rango compartilhado. Ela não era de expressar sofrimento. Mesmo na estrada – a cada cinco quilômetros parava meia hora para descansar – não a sobrecarregava, e a levava, na maioria das vezes, no carrinho de mão. Foram intensos seis anos de amor. E, hoje, continuo com o manifesto sonho marginal: existir.
WalterMuller
Alternativos possíveis do trans-caminho do amor