Um ensaio de Anna Cristina de Araújo Rodrigues
Anna Cristina de Araújo Rodrigues é doutoranda em Teoria e História da Arte no Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Comunicação (UnB). Graduada em Letras (UnB) e Jornalismo (UCB).
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TEMPO E UTOPIA: AS NARRATIVAS FOTOGRÁFICAS DE ZOFIA RYDET
Antes de apresentar a fotógrafa polonesa Zofia Rydet, personagem central deste ensaio, chamo a atenção para a fotografia em sua relação com a passagem do tempo, considerando a aceleração que caracteriza a modernidade e se acentua na contemporaneidade. Para isso, utilizarei imagens fotográficas da artista, objeto da minha pesquisa de doutorado no Instituto de Artes da Universidade de Brasília.
Zofia Rydet nasceu, viveu, produziu uma obra impressionante e morreu no século XX (1911-1997). Movida por uma necessidade pessoal de documentar, fotografou casas, paisagens, cerimônias e pessoas comuns, trabalhando ou posando para as fotos no interior de suas casas, tendo ao fundo uma parede onde se vê uma infinidade de objetos.
Foto 1 – Zofia Cudzich with her father Stanisław Sieczka; black and white film 24×35 mm; 1984; Series: people in interiors; Region: Biały Dunajec, Poland. Disponível em: http://zofiarydet.com/zapis/en/photo?page=4&photo=zr_01_009_02. Acesso em: 11 jul. 2020.
Ao pôr em prática seu declarado projeto utópico de fotografar todos os lares poloneses – que ela chamou de Registro Sociológico –, Zofia trabalhou com a história e a memória de um país que enfrentou de maneira especialmente dura um dos mais assustadores episódios históricos do século XX – o Holocausto (é preciso lembrar que é na Polônia que fica o maior campo de extermínio do Terceiro Reich – Auschwitz). No Registro Sociológico, Zofia mostra ao mundo um arquivo fotográfico da vida privada dos poloneses de uma maneira que revela identidades e, igualmente, oculta aspectos da história recente de um país que foi palco de exacerbada violência. Suas fotografias, porém, não são meros documentos, pois foram capturadas em uma atmosfera cuidadosamente preparada, o que revela grande preocupação plástica.
Foto 2 – Black and white film 24×35 mm; 1984; Series: objects & decorations; Region: Biały Dunajec, Poland. Disponível em: http://zofiarydet.com/zapis/en/photo?page=1&sets=3&photo=zr_01_003_34. Acesso em: 11 jul. 2020.
Foto 3 – Black and white film 24×35 mm; 1980; Series: myth of photography; Region: Lublin Voivodeship, Poland. Disponível em: http://zofiarydet.com/zapis/en/photo?page=1&sets=6&keywords=55&photo=zr_14_001_04. Acesso em: 11 jul. 2020.
Nos milhares de imagens já disponíveis para o público, não há traços de um país em guerra, nem das décadas de transformações econômicas, políticas e culturais vividas pela Polônia, muito menos das convulsões sociais causadas pelo colapso econômico e político do país, interrompidas em 1978, quando Karol Wojtyla tornou-se o Papa João Paulo II. Ano, aliás, em que Zofia começou os trabalhos no Registro Sociológico, o que não há de ser mera coincidência. Em 1980, nova onda de protestos sacudiu o país, liderados pelo sindicalista Lech Wałęsa, entre outros, em resposta aos quais o governo declarou a lei marcial e mandou prender seus opositores. Em meio a essa movimentação, Zofia fotografou até 1990, portanto quando a Polônia era uma república comunista. Nesse contexto, é possível supor que ela tomou a decisão política de não emitir opinião sobre o que via e fotografava no país, influenciada pela repressão do regime (MAZUR, 2018).
Já perto da morte, Zofia deixou orientações sobre como as fotografias do Registro Sociológico deveriam ser organizadas: as fotos seriam um documento histórico, e suas reproduções, um instrumento de disseminação da informação histórico-cultural.
Feitas em mais de cem vilas e pequenas cidades de diversas regiões do interior do país, não se nota nas imagens a violência de um regime fechado, mas também não há dúvida de que a artista está arquivando “uma” memória. Pelas fotos, seu interesse parece se dirigir às preferências estéticas, às opiniões políticas e à crença religiosa (católica apostólica romana) que se manifestavam nas maneiras particulares de os fotografados organizarem seus espaços privados.
Foto 4 – Romek Sowiński; black and white film 24×35 mm; 1978; Series: people in interiors; Region: Silesia; Poland. Disponível em: http://zofiarydet.com/zapis/en/photo?page=1&sets=1&keywords=77&photo=zr_04_007_03. Acesso em: 11 jul. 2020.
Foto 5 – Black and white film 24×35 mm; 1978; Series: people in interiors; Region: Podhale, Poland. Disponível em: http://zofiarydet.com/zapis/en/photo?page=1®ions=3%2C20&keywords=77&photo=zr_03_003_12. Acesso em: 11 jul. 2020.
A academia polonesa tem interpretado o projeto de Zofia como preservação sentimental de imagens de áreas rurais pré-modernas que sucumbiam ao processo de modernização. Mas o que nos contam as preferências estéticas, políticas e religiosas que se observam nos objetos presentes nas fotografias? Não ofereço agora uma resposta a essa pergunta, tampouco sobre a intenção da fotógrafa ao dar corpo ao seu Registro Sociológico. Por outro lado, é inevitável pensar nisso.
Zofia estava lidando artística e politicamente com o tempo, mesclando passado, presente e futuro – tempos heterogêneos e descontínuos. E foi buscar nas vilas do interior do país os fragmentos do mundo a serem fotografados. As imagens produzidas mostram jeitos de viver e de trabalhar cujos traços descrevem uma vida muito diferente da vida moderna.
São “anacrônicas” as suas imagens, na medida em que Zofia parece jogar com os fragmentos do mundo presente que era a sua pátria, apresentando ao espectador cenários de um tempo passado – ou prestes a deixar de existir – e, concomitantemente, delineando as leituras futuras de seu mundo por meio de suas fotografias. Zofia, apesar de já ter idade avançada e saúde precária, mas sabedora da condição especial do fotógrafo como filtro cultural, certamente se deu conta da aceleração ainda mais acentuada da vida a partir da segunda metade do século XX e tentou desacelerar a passagem do tempo, apelando para um registro que privilegiava a memória nostálgica da vida doméstica polonesa: a casa, a família, as atividades cotidianas, as ocupações. E fez isso com enorme sensibilidade artística.
Ensina-nos Didi-Huberman (2017) que usar esse recurso é um modo de o artista se colocar diante da história e diante do tempo complexo e impuro da imagem. E é ainda Didi-Huberman (2017) que nos lembra:
Sempre, diante da imagem, estamos diante do tempo. […] Diante de uma imagem, enfim, temos que reconhecer humildemente isto: que ela provavelmente nos sobreviverá, somos diante dela o elemento de passagem, e ela é, diante de nós, o elemento do futuro, o elemento da duração (durée). A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro que o ser (étant) que a olha. (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 15-16)
Zofia dá mostras dessa consciência temporal da imagem. Ela mesma afirmou em entrevista: “A fotografia me dá a chance de parar o tempo e superar o espectro da morte. O retrato documental mais simples e comum torna-se uma grande verdade sobre o destino humano, e esta é a minha luta constante com a morte, com o passar do tempo”.
Foto 6 – Zofia Rydet at an exhibit of her Sociological Record, Opava, 1989. (Photograph: Janusz Moniatowicz). Disponível em: http://zofiarydet.com/zapis/en/pages/sociological-records/intro. Acesso em: 11 jul. 2020.
Referências
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo – história da arte e anacronismo das imagens. 1. reimp. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.
MAZUR, Adam. Perhaps the greatest polish woman photographer: problematics of research into the life and art of Zofia Rydet. In: PIJARSKI, Krzysztof. (Ed.). Object Lessons: Zofia Rydet’s Sociological Record. Chicago: University of Chicago Press, 2018. p. 69-92.
RYDET, Zofia. Sociological Record. 2013. Disponível em: http://zofiarydet.com/. Acesso em: 11 jul. 2020.