Um ensaio de Denize Dall’ Bello
Denize Dall’ Bello. Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Professora do Departamento de Letras, da Universidade Federal de Mato Grosso.
De sonhos e de gatinhos integra o e-book Estalos, incidentes e acontecimentos como procedimento e método da pesquisa em artes, organizado por Cláudia Leão e Maria dos Remédios de Brito, para o Programa de Pós-Graduação em Artes/ Universidade Federal do Pará.
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De sonhos e de gatinhos
Os sonhos geram emoção. Christoph Wulf em Imagem e Imaginação: perspectiva da antropologia histórico-cultural dedica uma pequena parte do seu artigo para falar da relação entre a imaginação e a emoção. É dentro desta seção que ele escreverá que mesmo em sonhos a imaginação faz aparecer as emoções.
Embora ele não explique como essa energia age nas produções oníricas, é muito interessante perceber que, a atuação da imaginação é altamente viva, também nesse estado de inconsciência. Quando acordamos de um sonho, sentimos como se tivéssemos atravessado uma porta por onde voltamos à realidade material. Somente o sonhador que permaneceu nesse lugar conhece-o. Não raro, o despertar traz junto das imagens produzidas intensas emoções.
Foi o caso do sonho que eu elaborei logo após a morte do meu gatinho Nininho. Eu não posso, ainda, escrever “era”, porque para mim ele não foi embora. Alguns dias depois, veio o sonho. Eu não consegui anotar, faltou coragem. Foi um sono agitado, difícil. Interrompido pela compreensão da perda. O sonho exprimiu a minha situação de fragilidade pessoal. Não em relação a essa vida findada, mas a tudo que dela já foi embora. Os últimos anos foram marcados por perdas pessoais e, como tal, o sonho provavelmente me disse sobre como emocionalmente eu tenho vivido esses episódios.
Sonhar, escreveu Nise da Silveira é um privilégio para a nossa espécie. Ela disse isso baseada no livro que escreveu sobre a vida e a obra de Carl Jung. Os sonhos nos colocam em contato com muitas situações e afetos que carregamos, por vezes, conflituosos. Para mim, sempre foi difícil entender esse inconsciente estudado pela psicologia. Não só pela linguagem, às vezes, técnica demais, mas também pela pressa com que realizo as leituras para racionalizar aquilo que leio, num esforço para aclarar as minhas dúvidas. E por mais que eu invista em tentativas de compreensões finais, o inconsciente e as suas manifestações sempre permanecem como um quarto aberto a ser visitado.
E por quê? Vou dar uma resposta pessoal: porque é lá que eu vivo as minhas emoções quando por fora eu estou aparentemente soft – digamos assim.
Nise da Silveira escreveu que Jung, depois de ter lido A interpretação dos sonhos (1900) de Freud, viu “complexos afetivos” nas perturbações que palavras indutoras provocavam naqueles que participavam dos experimentos usando associações livres. Eu não posso afirmar que a morte do meu gatinho despoletou algum complexo emocional. Posso, no entanto, dizer que escrever me ajuda a assimilar essa carga que a morte depositou na minha alma e no meu corpo. Sonhar, também, pode ajudar. Assim, a referência teórica ao conceito dos complexos desenvolvido por Jung tem um propósito nesse texto: o de mostrar como a nossa natureza é profundamente emocional, embora, como se lê, eu não tenho como objetivo aprofundar o conceito.
Meu foco é falar para vocês um pouco de tudo isso que é vida e que a Semiótica e tantas outras disciplinas científicas propõem-se a pesquisar. Estou falando, portanto, do sonho, da emoção da perda, do meu Nininho, em especial.
Enquanto eu escrevia e organizava os pensamentos me veio a ideia de que vocês só têm uma fotografia dele e de mim no chão do quarto. Nada sabem desse ser que deixou um pedacinho da sua curta vida na minha vida. Podemos amar um animal? Não seria demais? Ridículo até dar tanta importância a um gato? Dar-lhe nome? Acontece que essas perguntas expressam pontos de vista sobre a ciência, sobre o homem e o seu lugar nas sociedades. Têm a ver, também, e muito com a comunicação: área de estudos onde nos encontramos.
Charles Darwin (1809-1882) quando descreveu os movimentos expressivos exibidos pelo homem e pelos animais na face e no corpo, argumentou que esses são o primeiro meio de comunicação entre a mãe e o bebê humano e animal. Eles desenvolvem uma intensa comunicação na qual o bem-estar de ambos depende desse contato. Ainda mais: com os gestos nós potencializamos a emoção e, por isso, a relação entre as emoções e o corpo é profunda. É lastimável que muitos pensem que os animais sejam desprovidos de linguagem emocional. Eu não comungo deste ponto de vista.
Foi por essa razão que eu escolhi a fotografia acima e que introduz esse ensaio. Eu acho que o Nininho está “rindo”, se divertindo muito comigo. Boris Cyrulnik revelou numa entrevista no livro La màs bella historia de los animales (2003) que os veterinários estão convencidos de que os cães e os gatos riem. Nininho ri por causa das cócegas que eu lhe fazia, em parte com o meu rosto e com o meu cabelo que deveria lembrar-lhe um pouco do pelo da gata. Tão pequenino se entregava aos jogos que os gatinhos tanto gostam de fazer. E eu, adorava curvar-me, diminuir de tamanho para ficar mais próxima ao mundo do meu gatinho. Quanta emoção! Quanto querer bem! Mútuo. Ficamos juntos até o início da manhã do dia 01 de janeiro de 2018, quando o levei a uma clínica veterinária, porque ele estava morrendo. Deste ponto em diante, eu não escrevo mais. Tudo foi lágrimas.
Eu retirei a expressão “Quanta emoção” e aprendi a relacioná-la às experiências, com Nise da Silveira, num livro chamado Gatos: a emoção de lidar. Nesse livro, o gato é a figura central em todos os capítulos. Porém, não menos central são as mãos e a voz que tocam ou agridem esses animais, pois toda a espécie de maus tratos, negligência e indiferença, também e felizmente, de amor, cuidado, empatia e bondade tem nas mãos, na boca e no olhar o seu ponto de partida. Poderíamos chamar de processos de comunicação. Por isso: emoção de lidar. De “sentir as consequências desse encontro” com o outro. Quer dizer, de receber e expressar afeto. Não pode haver comunicação sem afeto, sem envolvimento. É o que Nise da Silveira escreveu no seu trabalho Simbolismo do gato no seu livro O mundo das imagens (1992). Ela disse: “ Todo ser humano tende interiormente a esforçar-se para crescer, para universalizar-se. E universalizar-se significa encontrar ligações a seres e coisas, mesmo àquelas que pareçam distantes dele mesmo. ” (Silveira, 1992, 112).
A palavra ligação é fundamental para a semiótica e para a comunicação. Isso, porque a semiótica, que é o estudo dos signos produzidos pelo homem e pelos animais, serve para estabelecer as ligações entre um código e outro, entre uma linguagem e outra. Serve para ler o mundo não verbal: “ler” um quadro, “ler” uma dança, “ler” um filme – e para ensinar a ler o mundo verbal em ligação com o mundo icônico e não-verbal. Esse raciocínio desenvolvido por Décio Pignatari dialoga diretamente com a posição de Nise quanto à necessidade de expandirmos o nosso mundo interior, os nossos conhecimentos. De que outra forma cresceríamos senão através dos nexos entre o externo e o interno, entre aquilo que vemos, pegamos, escrevemos, lemos, sentimos? E aqui esse meu pequeno texto é importante – pelo menos do meu ponto de vista – porque, embora trate de uma situação de perda, a que todos estamos sujeitos – ele procura mostrar que existem mundos onde a palavra não é tomada como o código central, onde tudo adquire sentido, se traduzido em código verbal.
Embora possamos falar sobre o nosso medo da morte, no fundo, nós só podemos senti-lo, mesmo. As palavras, repetindo Christoph Wulf (2014), são representações das emoções. As palavras não são as emoções. A semiótica e a comunicação ajudam, então, a questionar o logocentrismo que existe em muitas culturas e em relação ao mundo animal. Por que os animais, que vivem no mundo das sensações, dos sentidos, não falam, podem, por essa razão, ser classificados como seres inferiores?
Acontece que adaptar-se ao mundo dos humanos e compreendê-lo não é tarefa simples. Boris Cyrulnik (2003:154) explica que os animais domésticos entenderam que a boca é um canal de comunicação sonoro privilegiado entre os homens. Por isso, os gatos miam, quando se dirigem a nós, ainda que o olfato e as posturas sejam suficientes para comunicarem-se dentro da sua espécie. E o que nós entendemos da semiótica e da comunicação dos gatos, por exemplo? Dos seus sofrimentos?
Pergunto isso, também, porque em 2013, eu tentei apresentar ao Curso de Letras da UFMT uma proposta – que foi rejeitada – sugerindo a inclusão do tema do sofrimento no currículo do curso. Na época, limitei a abordagem ao sofrimento humano. Quer experiência mais profunda, mais difícil de se viver que a dor física e emocional? Quando trabalhamos com ela, tratamos de conceitos, como: alteridade, resiliência, relato, vínculo, cultura, violência, entre outros. Mais: tratamos de uma imagem muito complicada com a qual temos de lidar: a do espantalho. Quando decidimos contar aos outros o que nos fez sofrer, o espantalho é a figura que aparece nos olhos de quem nos ouve e vê – disse Boris Cyrulnik (Cyrulnik:2014). E quem quer ser espantalho, não é? Olhos abaixados, corpo derrotado. Chegar ao fim da linha? É por isso que o relato, a escrita, o teatro nos ajudam não só a metamorfosear o trauma, como fazem a sociedade aprender com a experiência de quem foi ferido.
Quando eu olho novamente para os desenhos abaixo – copiados diretamente do calendário anual dos artistas que pintam com a boca e com os pés – eu não deixo de pensar em como os animais nos deram a possibilidade de humanizarmo-nos (Cyrulnik,2003:135). Desenhá-los em postura de alegria e descontração é uma forma de representá-los no seu mundo próprio. É assim que eu prefiro imaginá-los. Às vezes, olhando para mim, outras vezes, preparando-se para saltar sobre um objeto qualquer muito mais fascinante do que a minha presença.
Para quem ainda se questiona se é mais importante acudir uma pessoa enferma ao invés de um animal, eu me alinho ao pensamento de Cyrulnik, quando ele responde que não podemos fechar os olhos diante de qualquer forma de sofrimento. Não se trata de escolher entre uns e outros. Nenhuma pessoa sofrerá menos, se se torturar um animal (2003).
Bibliografia
Darwin, Charles. A expressão das emoções nos homens e nos animais. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Cyrulnik, Boris. Os patinhos feios. São Paulo, Martim Fontes, 2005.
—————-. La màs bella historia de los animales. Editor: Andres Bello, 2003.
Pignatari, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Editora Atelie, 2017.
Nise da Silveira. https://www.youtube.com/watch?v=TvvYrrES_l0