Um ensaio de Irka Barrios
Irka Barrios é contista e novelista, mestre em Escrita Criativa (PUCRS). Premiada no Concurso Brasil em Prosa (2015) com o conto O coelho branco. Atua na organização do coletivo Mulherio das Letras – RS. Tem contos publicados nos livros Língua Rara (Ediciones Outsider, 2017), Cem anos de amor, loucura e morte” (Editora Moinhos, 2017) e Não culpe o narrador (Editora Bestiário, 2018). É também autora de Lauren (Editora Caos & Letras, 2019), romance que tenta explorar esse universo cheio de nuances que é a descoberta da sexualidade feminina.
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El violador es tu
ou
Não é esse o tipo de mundo em que vivemos, Thelma
Faz um bom tempo que eu penso em relatar, num texto apaixonado, de fã mesmo, o que Thelma e Louise me ensinaram sobre o feminismo. Esse era o título, essa era a ideia. Porque nada mais lindo (e poético) que duas mulheres (aparentemente livres) dirigindo um conversível pelo deserto e promovendo certos justiçamentos, correto? Nem tanto.
Vamos começar com Thelma. Thelma, a dona de casa submissa ao marido escroto; Thelma, a mulher que afivela o relógio (dele) e oferece o café; Thelma, a esposinha sorridente que é repreendida quando grita (eu notei pequenas rebeldias nos gestos de Thelma, Sra. Khourie? se sim, obrigada por torná-la menos estereotipada e mais próxima do real).
O marido de Thelma, sim, é estereotipado. É muito fácil odiá-lo, afinal o cara representa uma figura patética que cai um tombo após xingar o jardineiro. Está bastante claro que Thelma o despreza (e quem não desprezaria?), essa construção foi fácil para ganhar a antipatia do espectador. Mas vamos avançar um pouquinho mais. E se o marido de Thelma fosse outro tipo de opressor? Se fosse um marido amoroso, que cerca de cuidados, trata bem, beija, presenteia com flores e a agressão (verbal, sutil) só aparecesse em casos específicos, quando ele quer (ou precisa) impor autoridade? Todo o exercício de imaginar este cara quase inofensivo me fez pensar em outro filme, também antigo, intitulado “Dormindo com o inimigo”. Na primeira vez que assisti, lembro que questionei as cenas inicias: por que abandonar um partidão desses? Rico, bonito, apaixonado, o que mais uma esposa ia querer? Tudo bem que dez minutos depois conhecemos o homem obcecado, cheio de TOCs e manias. Hoje sabemos que um homem não precisa chegar a este extremo para ser considerado opressor. Convido-as, então, a permanecermos nas sutilezas.
A professora e escritora Jane Felipe foi quem me apresentou, anos atrás, o termo “maus tratos emocionais”. Ela organizou uma ampla pesquisa de conscientização das mulheres para mostrar que agressão verbal dói e machuca quase tanto quanto a física. É o parceiro que insiste em dizer que você é incapaz, burra e não conseguirá sustento sem o braço protetor dele. Toda essa ladainha tem o propósito oculto de minar a autoestima da mulher, que acaba concordando e achando cada vez mais difícil se livrar de uma relação tóxica. Algum tempo atrás, li que as discussões sobre relações tóxicas desembarcaram por aqui há muito pouco tempo. Na Europa, por exemplo, o tema está bem comum e isso provocou separações de casais até então considerados perfeitos. Através destas discussões, mulheres passaram a identificar comportamentos inaceitáveis. Maus hábitos que antigamente eram considerados romantismo extremo, overdose de afeto (se ele tem ciúmes é porque te ama demais), hoje se entendem como abusivos. (Recomendo outro filme, que acabou de estrear, e trata destas sutilezas abusivas numa relação. Chama “História de um casamento” e me tocou bastante porque demonstra o que acontece quando a mulher decide protagonizar a sua vida).
Mas voltemos à Thelma, mais especificamente ao marido escroto da Thelma. Se ele fosse um perfeito exemplo deste cara que impõe uma relação tóxica de forma sutil, pouco ou quase nada enfática, nós, mulheres espectadoras sentiríamos a mesma repulsa? Torceríamos para que ele se desse muito mal, fosse traído e abandonado? Difícil reflexão.
Agora proponho analisarmos a personalidade de Louise. Louise, a garçonete durona que fala em sexo; Louise a mulher que fuma e tem uma relação casual com um músico; Louise, a amiga moderninha que quer arrancar Thelma de uma rotina monótona (é só por um final de semana, lembram?). A putona Louise nos é apresentada como pessoa centrada, correta, a amiga que insiste para que Thelma conte ao marido sobre a viagem. Ela também é organizada, a cabeça da dupla. Planeja o roteiro, abastece o carro, dirige, reluta em fazer paradas desnecessárias, não se permite diversão (a não ser que Thelma a convença, “são só duas margaritas, por favor!”).
Louise tem coragem e sangue frio para acertar um balaço no peito do homem que tentou estuprar Thelma. E também é Louise que decide o que fazer a seguir. Quando Thelma tem uma crise nervosa e diz que o correto era que fossem para uma delegacia explicar o que houve, a resposta de Louise é curta e grossa (tal como o típico pensamento do macho):
“Você passou a noite dançando coladinha nele. Quem vai acreditar na versão do estupro? Não é esse o tipo de mundo em que vivemos, Thelma.”
Todo esse preâmbulo serviu para entrar no ponto que realmente me interessa e que se conecta com uma frase do canto que se iniciou com o coletivo feminista chileno Las Tesis e se espalhou pelo mundo:
“e a culpa não era minha, nem onde estava, nem como vestia”
Quantos anos levamos para entender este verso? E quantas de nós ainda vão custar a entender?
Nos anos 90 Louise não entendeu, embora Thelma já entendesse. (Logo depois as duas sentam numa cafeteria e Louise repete que Thelma as colocou naquela confusão. A resposta é a mesma que hoje cantamos com o coletivo Las Tesis: “você está insinuando que a culpa foi minha?”).
Confesso que eu também não entendi durante boa parte de minha vida. E hoje me pergunto como foi possível culpar Thelma por todas as desventuras que se seguiram após o assassinato de um estuprador.
A sonhadora e inconsequente Thelma é quem importa nesta obra. Porque Thelma flerta, Thelma tem desejos, Thelma sabe o que quer e (principalmente) o que não quer. Apesar de ter experiências sexuais com um único homem, o marido, Thelma tem a sexualidade bem resolvida e é aí que está a sua ruína. Os dois homens com quem se envolve durante a road trip só se aproximam para tirar algo: o primeiro a incentiva a beber e depois tenta estuprá-la, o segundo a rouba após uma noite de sexo. Neste ponto, o filme é bem problemático e eu diria até arcaico. Novo parêntese: o ladrãozinho Brad Pitt roubou o dinheiro de Thelma, mas deu-lhe algo que ela não conhecia, o orgasmo, e aqui também poderíamos abrir uma imensa aba de discussão sobre pontos que rondam a sexualidade feminina, sempre interpretada como recompensa ou castigo. Porque a mulher que exerce livremente sua sexualidade deve ser punida. Não é mesmo?
Semana passada li uma crônica em que a escritora Martha Medeiros dizia que achava que o caminho da nossa emancipação já estava pavimentado pelos notáveis feitos das feministas dos anos 50 e 60. O trabalho duro, a abertura das portas, queda das barreiras estava consolidada, pensava Martha, e não havia mais pautas tão relevantes pelas quais lutar. Eu me identifico com Martha, também passei um tempo pensando desta forma. E agora, tal como ela diz no parágrafo seguinte da crônica, vejo que falta muito, temos muita estrada pela frente.
Um bom exemplo é a bandeira feminista que trata da sexualidade da mulher, sem dúvida, a que mais me interessa no momento. A mulher tem (ou deveria ter, num mundo ideal) o direito de exercer a sexualidade sem medo. Parece simples, mas é só aproximar o foco que as complexidades saltam. O primeiro obstáculo a vencer é a ideia (um tanto tosca) de encerrar a sexualidade das mulheres dentro de uma caixinha e sair por aí, cheio das teorias, repetindo “oh, é um mistério, é um mistério”. Não gosto disso porque passa a ideia pretensiosa de que os homens devem se sentir constantemente instigados a nos desvendar. É como se nossa sexualidade fosse um prêmio, um objetivo. Não gosto porque passa a ideia de forçar limites. Concordo que quando se trata de sexo, existem práticas aceitáveis para algumas e abomináveis para outras. Classificar, neste caso, é reduzir, é subestimar um universo que muitas vezes não está aberto para investigações. (Entendam, parceiros, que temos o direito de manter nossos segredos intactos, acessados apenas por nós mesmas). Penso que alguns mistérios não querem ser desvendados. E que precisamos enterrar (de uma vez por todas) essa máxima (também arcaica) de que a mulher quando diz não quer dizer sim. Não é difícil. Como diz a Louise (antes de acertar o tiro no coração do estuprador): “se uma mulher está chorando é óbvio que ela não está se divertindo”.
Nessas andanças pela vida literária conheci duas mulheres notáveis que trabalham a questão da sexualidade em áreas diferentes e (por isso) tão interessantes. Uma é Ana dos Santos, poeta, feminista, performer. Ana escreve poemas, com predileção pelo erótico e criou uma performance usando o texto e seu corpo. Quando a conheci, numa fala sobre sua arte, Ana relatou que certa vez sofreu mau juízo de pessoas que a assistiram. Cria-se uma situação muito problemática quando espectadores não conseguem definir o limite entre o que é a vida pessoal e a arte. E há uma tremenda falta de respeito pelo trabalho do artista quando este limite é forçado a ponto de se transformar em insinuações desagradáveis do tipo “você gosta disso, é? Hmmm… você faz na intimidade?”. No Brasil de 2019 esse tipo de atitude se tornou comum, e parece que todo mundo se sente imbuído de razão para protestar, difamar e ofender artistas que performam usando seus corpos. Felizmente Ana também tem boas histórias. Contou-me que uma senhorinha se emocionou, chamou-a para uma conversa e disse que era a melhor apresentação que assistiu na vida. (Olha as Thelmas aí, surgindo quando menos esperamos).
Outro trabalho de mulher que me interessa é o da Luciana Campos. Poeta e ginecologista, Luciana trabalha para estimular a sexualidade de mulheres com câncer ginecológico e está preparando um livro sobre o tema. Em seus textos e posts do Instagram, a autora trata da importância de manter a sexualidade em dia, mesmo doente, mesmo triste e sem esperança. Há algo de muito comovente e inspirador no trabalho de mulheres que se preocupam com a sexualidade das outras, que as estimulam a amar seus corpos, a viverem bem com suas perdas, mutilações, aumento de peso, ou com as mudanças que os medicamentos impõem. É solidariedade, troca de afeto num âmbito que achávamos impossível.
“Você tá acordada?”, pergunta Thelma.
“Meus olhos estão abertos”, Louise responde.
“Eu tô super acordada, totalmente acordada. Não lembro de outra vez na vida em que estivesse tão acordada.”
E então vem a cena do caminhão.
Nossas heroínas são jogadas na vida loka após uma sucessão de erros que resultaram em crimes. Elas reconhecem que a polícia está em seu encalço e a saída é passar pela fronteira do México (claro, para onde vão os criminosos?). A estrada é longa e solitária, mas nem tanto. Há um caminhoneiro que não hesita em gritar gracinhas e fazer gestos obscenos. Isso acontece duas ou três vezes, o suficiente para que elas decidam revidar. Convidam-no para um encontro, logo ali, no acostamento poeirento, porque está óbvio que duas mulheres numa estrada quase deserta estão dispostas ao sexo com desconhecidos. Ele bate a porta e desce, animado com as possibilidades. Mas se depara com duas cowgirls armadas que exigem um pedido de perdão. O homem não baixa a guarda, enfrenta, xinga, testa-as. Louise atira primeiro, nos pneus. Thelma a imita e aquele imenso caminhão, preto e prateado, sofre a primeira dor. Arria inteiro, como se se ajoelhasse. Louise ordena mais uma vez: “peça desculpas pelas grosserias”. “Eu não acho que ele vá pedir desculpas”, diz Thelma. Numa sincronia perfeita, as duas apontam para a carroceria e disparam. E o imenso cilindro, impositivo e reluzente, tomado de testosterona, explode lançando chamas para todos os lados.
Chegamos ao final, agora Thelma e Louise são criminosas da mais alta periculosidade, perseguidas pelo helicóptero do FBI e mais um incontável número de viaturas. Atiradores de elite miram suas cabeças enquanto o investigador (único solidário com as pequenas tragédias que as tornaram foras da lei) tenta negociar a rendição. Mas tanto Thelma quanto Louise conhecem muito bem o mundo que deixaram para trás: um mundo feio, machista, misógino e hipócrita. O precipício, logo ali, na beirada, é a possibilidade libertadora. A decisão não é difícil, elas se beijam, dão as mãos e Louise acelera.
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Mulheres inspiradoras citadas neste texto:
Callie Khourie, roteirista de Thelma & Louise.
Geena Davis, atriz que interpreta Thelma.
Susan Sarandon, atriz que interpreta Louise.
Jane Felipe, professora e pesquisadora da UFRGS.
Ana dos Santos, professora, poeta e performer.
Martha Medeiros, escritora.
Luciana Campos, médica, pesquisadora e escritora.