Um ensaio de Lucas Grosso
Lucas Grosso é o autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, no prelo). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.
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O Subúrbio de Daniel Francoy
Falar do livro A invenção dos subúrbios (Edições Jabuticaba, 2018) de Daniel Francoy não é nenhuma dificuldade, porque o livro não se apresenta para nós com qualquer desafio. Antes, é um livro de calma, uma fuga para algum lugar de segurança, do passado do autor, em meio ao caos do presente. Porém, é um livro com entradas de diário que se destaca por vários motivos; a questão temporal é o mais aparente deles.
Além da estrutura temporal, sublinho outros traços que são próprios da escrita do Daniel, e do seu trabalho literário em geral. O primeiro, é sua linguagem, que vai do poético ao narrativo, passando pelo ensaístico, mas com velocidade e fluidez. O segundo, é no que se refere ao trabalho com as fotografias que ele tirou, e inseriu ao longo do texto.
Assim, em uma primeira leitura, a gente pode pensar numa estética de ficcionalização do eu, de quebra com a realidade concreta, e reinvenção cronotrópica (isso é, na perspectiva do tempo e do lugar do texto), igual acontece nos poemas da Ana Cristina Cesar. Dessa forma, o narrador seria um eu-possível, que, ao mesmo tempo em que se ficcionaliza, revela sobre si e sobre seu contexto, na medida em que seleciona as entradas de seus diários ou os elementos contextuais sociais que formam a linguagem literária.
Porém, uma segunda leitura mostra que isso até pode ser uma perspectiva da obra dele. Mas o mais provável é que não seja, e que os planos estéticos e literários de Daniel sejam bem mais simples que os de Ana Cristina. E por isso mesmo, sejam bem mais interessantes. Em outras palavras, Daniel não parece estar querendo se desvencilhar da realidade extra-livro, não está ficicionalizando um eu-possível; seu livro é uma série de entradas de diário de Daniel Francoy andando por Ribeirão Preto e pensando coisas sobre a cidade, retomando memórias, analisando seu espaço.
Essa simplicidade, essa quase-fórmula de relatos de viagens, faz o livro ter uma força enorme, uma gama de construções sobre a urbanização, a indústria cultural e de bens de consumo, uma série de análises rápidas e precisas sobre algum nível da sociedade ocidental contemporânea: em outras palavras, o que é um “subúrbio”. A própria ideia de invenção entra, aqui. E o recurso de quebrar com a cronologia-calendário é, precisamente, um elemento-chave pra isso.
Mudaram as estações, nada mudou: as datas nos subúrbios
Quando eu digo que a quebra da temporalidade, no livro de Daniel, é um elemento-chave para pensarmos no conceito de “subúrbio” e “invenção” que ele coloca, o que quero dizer é que, no entendimento do autor, o que presenciamos, em um subúrbio, é uma constante. Em que sentido? Vamos pensar pelas entradas.
201
A primeira data é 01 de janeiro de 2017 (p. 11); a segunda, 03 de janeiro de 2016 (p. 12); a terceira, 09 de janeiro de 2016 (p. 13); então, surge 12 de fevereiro de 2015 (p. 21)… E assim seguimos, entre 2013, eventualmente, e 2014, 2015, 2016, 2017, mas, sem seguir uma cronologia tradicional, isso é, Daniel separa as entradas de janeiro em um capítulo chamado janeiro, e respeitando sequência numérica, mas não a sequência cronológica. Dessa maneira, é possível acontecer, igual falei aí em cima, 2017 vir antes de 2016 – o dia de 2017 é o dia 01 e o dia de 2016, o dia 03, afinal.
O que isso significa em termos de representação? No meu entender, significa que, na leitura de Daniel, a relevância temporal em um subúrbio não está em um período anual, mas em um recorte mensal; quando vemos esse zigue-zague de anos, o recorte se aprofunda, e sugere que o acontecimento de um dia em um ano, tem mais importância que aquele mesmo dia, em outro ano, mas, como panorama geral do mês, é relevante por si só. Confuso? Vejamos no caso citado.
O livro começa com uma entrada no dia 01 de janeiro de 2017, e nessa, o autor fica discorrendo sobre o calor, as festas de família, um aspecto geral do que sejam os dias 01 de janeiro, naquele lugar – o bairro Vila Tibério; uma frase-chave talvez seja: “Como se todos estivéssemos submersos, conversando debaixo da terra, esquecidos de uma terrível condição, comemorando o melancólico dia dos vivos”.
Então, na segunda entrada, 03 de janeiro de 2016, Daniel descreve um dia de chuva, compara o aspecto geral de seu dia com a descrição da morte de Brás Cubas, e resume: “Um dia de chuva triste e constante, de garoa peneirada sobre a nauseante doçura do tédio e das horas que se afirmam como uma força nula”.
E continuando na terceira, 09 de janeiro de 2016, ele fala sobre o aspecto geral da cidade e do bairro, sua aparência, a mentalidade da maioria de seus moradores, resumindo com a frase: “Talvez por isso, nos subúrbios, doam tanto os meses de Janeiro e Dezembro; meses que, a rigor, são não-meses, pois, em meio à euforia de um e ao torpor de outro, tem-se a fratura do hábito, do que se faz rotineiramente, sem alarde”.
O que esses trechos revelam? São descrições de aspectos do bairro que, são comuns a todos os anos. São constantes, todos os anos, mas, restritos àqueles meses específicos. Claro que o autor poderia ter feito isso de uma forma mais linear, mas o que interessa para ele não é propriamente a cronologia, mas a imagem acabada; assim, pensar uma cronologia em zigue-zague reforça o aspecto de constância daquele traço descrito em um dia específico, mas como algo que ocorre todos os anos.
Se Daniel seguisse rigorosamente o calendário, se ele fizesse um capítulo “janeiro de 2015”, “janeiro de 2016”, etc., seu discurso estético ia perder força – como assim? Ia parecer que ele estava restringindo aquela imagem descrita apenas àquele ano e não a um elemento comum, àquele lugar, naquela época – mas todos os anos.
Por isso, a partir do tempo, a gente pode pensar o título, “a invenção dos subúrbios”, já que é exatamente isso o que ele faz. Ele está criando uma imagem do que venha a ser o seu subúrbio, Vila Tibério, através de recortes temporais desse lugar. Em outras palavras, está associando adjetivos àquele lugar, naquela época do ano.
Citei brevemente 3 entradas, mas isso é a constante do livro. Todos os meses esse vai-e-volta dos anos, dentro de um período mensal acontece. Em meses como junho/julho, quando acontecem olimpíadas e a copa do mundo, ou outubro, quando acontecem as eleições, essa técnica de uma retórica discursiva fica ainda mais aparente. Quero dizer, essa técnica de criação de cenário (e, por que não?, de personagem, no caso a Vila Tibério) fica mais óbvia. A Vila Tibério tem suas características próprias em cada mês do ano, e essas acontecem, mais ou menos rigorosamente, todos os anos – essa é uma mensagem que o livro traz.
Um traço que a gente não tocou ainda, mas que se torna extremamente evidente aqui, a partir dessa colocação, é que o livro não tem enredo. Não é um “diário de viagem” ou simplesmente “diário”.
Se fosse, o relato poderia ser uma daquelas jornadas-do-herói, como são diários – biográficos ou literários –, tais quais, Confissões de Agostinho, Os sofrimentos do Jovem Werther, As ligações perigosas, etc., mas o caso é que Daniel não passa por nenhuma transformação no sentido de “transformação” que os exemplos aqui citados pensam. Não há, também, um enredo em um sentido tradicional, proppiano (acontecimento, problema, enfrentamento, solução, etc.).
Não é, também, um relato de viagem clássico, porque Daniel não é um viajante à Vila Tibério; ele não olha o lugar como estrangeiro, e nem tenta ressaltar culturas diferenciadas, tradições clássicas, lugares distantes e diferentes ou qualquer coisa desse tipo, que um relato de viagem (como Cem dias entre o céu e o mar de Amyr Klink, Ovelha negra, falcão cinza de Rebecca West e similares).
Para concluir a parte do tempo, a proposta de Daniel, ao colocar um tempo oscilante, é então a de elencar esses elementos comuns à um período. Criar uma imagem de um lugar ao longo de 12 meses. Efetivamente, “inventar” uma identidade para o bairro e seus moradores, em alguma escala. Isso, nos leva à questão do estilo do texto.
Se não é aguda, é crônica: a linguagem
No posfácio do livro de Daniel, Guilherme Gontijo Flores, brilhante poeta e tradutor, foca mais na questão da linguagem. E se ele faz isso tão bem, aqui cabe apenas que eu estabelecerei algumas considerações mais rápidas. Como gênero, o livro se enquadra em algumas possibilidades, e a de diário é a mais óbvia; entretanto, prosa poética, romance crônica, ou ensaios são possibilidades. Mas, a ótima editoração de Marcelo Lotufo não coloca nenhum gênero no índice para catálogo sistemático e, analisando o texto, entendemos as razões.
Por um lado, como vocês devem ter notado na minha análise rápida das três primeiras entradas, o livro versa sobre aspectos gerais do bairro Vila Tibério, em uma época específica do ano, mas que é comum a todos os anos. Mais do que isso, Daniel está “inventando” esse subúrbio, no sentido de que esses acontecimentos são analisados, às vezes, com certa crítica social, política e de tantas outras ordens quanto possível. Por outro lado, há, também, diversos momentos em que o autor se utiliza de prosa poética, como na entrada de 01 de janeiro, e, em outros tantos, ele faz digressões a momentos de sua própria vida, e, por meio dessas, procura se identificar com questões, histórias, imagens, memórias do bairro Vila Tibério.
Ou seja, a linguagem é um amálgama de estilos e recursos de escrita literária que fazem o livro original, e de difícil classificação. Como romance, poderia ser compreendido como a epopeia do homem-comum, aqui citando o conceito já meio desgastado de Lukács, e esse é, precisamente o teor de suas entradas – o dia-a-dia de um homem de classe média, em suas reflexões sobre as transformações que o bairro passa, o significado de datas, a descrição de cenas do cotidiano…
E não se esqueçam ainda que eu falei acima, o livro não tem enredo proppiano. Não tem um conflito, um problema, um clímax, uma solução. Muitos dos dias que Daniel narra são terrivelmente banais, como ir ao mercado, tomar uma cerveja num botequim, fazer compras. É o exímio domínio da linguagem e da capacidade de manipular o significado de símbolos do cotidiano, que faz esses relatos saírem de sua posição de acontecimento banal e frívolo; o exame minucioso do autor, a reinterpretação desses símbolos e cenas garantem ao banal e ao cotidiano um caráter de sublimação, epifania.
Afinal, como relato de viagem o livro não serve, tanto pela posição do autor em relação ao lugar, quanto em relação a que ele descreve. Não é uma cultura distante, um espaço natural único, uma experiência de imersão em outra cultura, um relato de uma viagem, enfim, o que Daniel está fazendo. A Vila Tibério é um lugar comum, com casas e pessoas comuns, lojas comuns, restaurantes comuns; nada, fora do espectro crítico-criativo do autor, parece ter qualquer importância – e aqui a gente sempre pode recorrer ao conceito de flanêur, do homem que anda pela cidade interpretando-a e interpelando-na.
Ao mesmo tempo, como Guilherme fala no posfácio, dá pra pensarmos na questão da memória e das saudades. E isso é algo extremamente presente nos relatos; Daniel está relembrando um tempo passado, um lugar de segurança, porque lá ele já sabe como as coisas terminam, algo diferente do presente-narrativo dele, que é uma constante transformação sem soluções aparentes, sem respostas óbvias; ele está sentindo falta de uma cidade e de um bairro que está se transformando.
Assim, diante de tantas possibilidades, poderíamos pensar que são crônicas sobre a Vila Tibério. Algumas com 200 palavras, algumas com 500, mas sempre crônicas. A crônica permite a liberdade estilística, gramatical e temática, e Daniel, em seu grandioso domínio da linguagem, cria essas crônicas e, para usar um mais-ou-menos chavão, recria o sentido de seu cotidiano, seu bairro e sua vida.
E aqui, entramos na questão das imagens.
Imagens substituindo mil palavras
Por fim, um aspecto que eu quero lançar alguma luz, no livro de Daniel, é no que se refere às suas fotografias. Não sei se são fotos profissionais, com que tipo de câmera, com ou sem filtro, e isso, na verdade, não importa, porque aqui quero fazer uma leitura multissemiótica.
Os estilos das fotografias são dos mais variados, e vão de fotos mais objetivas e bem focadas – como uma de uma grande via pública (p.16) (leitores de Ribeirão, me ajudem depois) – até outras bastante subjetivas e poéticas – uma santa de gesso, com a cabeça decepada (p. 58) – e outras, que parecem uma foto aleatória e amadora – dois orelhões com árvores no fundo (p. 34), um cachorro contra uma grade, com um letreiro de mercado, do outro lado da grande (p.77). são diversas fotos, e descrever uma a uma mereceria um artigo todo, apenas para elas.
O que aqui eu quero ressaltar são as relações entre as imagens e o texto, e talvez seja mio óbvio que colocar elas ao longo do livro, sem qualquer explicação ou legenda seja, também, “inventar” algo sobre o subúrbio. Por um lado, podemos pensar no aspecto da casualidade. São fotos que, a despeito de sua banalidade na forma como foram produzidas, no contexto geral do livro, são elevadas a um status de arte, porque recortam algum elemento ou traço identitário desse subúrbio.
O diálogo entre o texto e a imagem é evidente quanto reconhecemos nas imagens, cenas descritas por Daniel, ao longo do livro. Mas não sendo possível estabelecer uma relação direta, são linguagens complementares. Dentro das lacunas de informação que a foto produz, entram os elementos de subjetividade de Daniel escritor/fotógrafo, que recria o subúrbio, que pega o banal da Vila Tibério e transforma esse banal em algo estético, poético, político, social.
A foto da avenida pode ser um complemento às entradas, quando Daniel comenta os avanços do comércio de rua, ou da movimentação aos domingos, ou, sobre o ritmo da cidade depois de um feriado ou em uma data especial – como também pode não ser nada disso, e sim, uma imagem nova, uma interpretação nova, uma crônica nova que, apenas pela imagem, poderia ter aquele significado.
Igualmente o caso da santa, que pode vir a significar um traço de identidade religiosa na Vila Tibério, um traço do descaso do poder público, do abandono social de alguns moradores ou ainda a decadência do bairro. Pode ser um novo elemento da “personalidade” do subúrbio, na medida em que representa o rompimento com uma tradição religiosa ou estética, como pode ser um sinal de violência.
E assim, poderíamos falar sobre as outras fotos e outras não citadas. O desfoque de algumas imagens, o excesso de luz em outras, o excesso de precisão de algumas – tudo pode vir a ser um traço de identidade desse subúrbio que Daniel inventa e não inventa, na medida em que são recortes de uma realidade que existe, e recortes de um senso crítico e estético de alguém do bairro.
Mas, é preciso que se faça uma ressalva, porque as imagens se valem muito mais como leitura complementar do texto, do que o contrário. Uma foto de um (provável) açougue com uma cabeça de boi empalhada (p. 100), por exemplo, não é uma imagem que, por si, é bonita; trata-se de algo simples, cotidiano e um tanto kitsch; é por base de uma leitura do texto que nós interpretamos os valores implícitos em todos os elementos da foto – a cabeça, uma geladeira do lado, cheia de notas fiscais, um santo na janela, uma pessoa ao fundo, alheia ao olhar de fotografo. A própria interpretação do lugar enquanto um açougue (apesar da balança em outro canto da imagem e das notas coladas na geladeira), parte de algumas entradas do livro, que citam um açougue.
Assim, chego ao fim dessa leitura do livro fabuloso de Daniel Francoy, A invenção dos subúrbios. Uma leitura que procurou reforçar os aspectos do livro que, por si só, já são grandiosos. É um livro melancólico e fortemente poético, e é de uma leitura fácil e rápida, mas muito marcante.
Como eu disse no começo, não é um livro que é difícil de se elogiar e de reconhecer as qualidades, e esses três pilares que eu coloquei aqui (cronologia em zigue-zague, linguagem híbrida, relações texto-imagem) atestam isso, e reforçam meu ponto. Sem interpretar eles, um leitor já chega ao final maravilhado com as habilidades narrativas de Daniel, sua capacidade de sustentar uma cena sem diálogos ou ações, seu olhar atento para estetizar a banalidade do cotidiano comum. Outros elementos do livro, como os traços afetivos apontados por Guilherme Gontijo Flores mereceriam algumas páginas, mas isso, deixo para os próximos leitores.
Aqui procurei interpretar e analisar os três aspectos que, primeiro, me chamara a atenção, e, lendo e discorrendo sobre eles, entender um pouco mais o que significa e é a invenção de um subúrbio. Se não atingi totalmente meus objetivos, fico feliz, porque um livro desse naipe merece ser objeto de vários artigos. Esse foi apenas um deles, e é com expectativa que espero outras pessoas inventando e reinventado A invenção dos subúrbios.