Um ensaio de Luiz Renato Souza Pinto
Luiz Renato Souza Pinto lançou, em 1998, o romance Matrinchã do Teles Pires, que trata da colonização do norte do Mato Grosso ao longo dos anos setenta, durante a ditadura militar. Em 2014, veio Flor do ingá, desdobrando a aventura e apresentando o cotidiano de um casal que se conhece em Londrina, Paraná e vem para o Mato Grosso, quando então se separam. Em 2018, Xibio completa a trilogia, destacando a vinda de nordestinos para garimpos de diamante em Mato Grosso e Goiás. O autor também publicou Duplo sentido (crônicas), em 2016, em parceria com o pernambucano Carlos Barros e Gênero, número, graal (poemas) em 2017, ganhador do II Prêmio Mato Grosso de Literatura.
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Polifonia Nuclear
Tenho pensado sobre a lógica que rege as premiações literárias. Biblioteca Nacional, Jabuti, os estaduais, o Nobel. Ainda não li o livro de Jacques Fux, mas acabo de devorar “a história oral do desastre nuclear”, um dos livros da premiada escritora Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Nobel de 2015. Uma escrita forte, vigorosa, que faz tremer as bases humanitárias que constituem qualquer ser humano. Ou melhor, que deveriam constituir. Um relato provocador de memória, uma busca pelo inconsciente coletivo caracterizador de uma tragédia, a derrocada do soviet, explorada por ela em outras obras.
Episódio marcante da história recente do povo soviético e das pulverizações do território, geradoras de outras nações, a tragédia nuclear de Chernobil deixa insepulta uma série de questões ligadas à identidade, à sobrevivência, à política energética de estado que sepultou vidas em nome de um progresso temeroso, fruto da onipresença política e cultural de mitos do século XX, de Lênin, Stálin, Kruchev, Ieltsin, até Gorbachev, liderança da abertura política e econômica ao mundo ocidental. “Incendiou-se a chama da eternidade” (Aleksiévitch, 2016, p. 42).
A radiação emitida pela explosão do reator de número quatro ocorreu um ano antes do acidente com o Césio, em Goiânia, tragédia que inaugurou esse tipo de acidente fora de instalações produtoras de energia. Lembro-me de como se exploraram as imagens que partiram de Goiás para o mundo, via satélite, e que nos revelavam o brilho chamativo que emanava dos elementos radioativos. A autora agora nos traz essa imagem ampliada em milhares de vezes, junto a afirmações como a de que “a radiação não se vê, não tem odor nem som” (idem, p. 44). Mas tem cores!
Não bastassem as mortes de humanos, houve o assassinato em massa de todo e qualquer animal, os vegetais eram arrancados e enterrados vivos. Batatas, árvores frutíferas e não frutíferas. Besouros e baratas, corças e lebres, todos com o mesmo valor de mercado. E pensar que “Houve um tempo em que os índios do México e mesmo as populações russas pré-cristãs pediam perdão aos animais e aos pássaros quando os sacrificavam para se alimentar” (idem, p. 47). O tom melancólico atravessa as trezentas e oitenta e três páginas da obra. Um livro que para muitos pode não ser literatura, uma vez que não é ficção, mas que nos conjuga verbos no presente para projetar um futuro pelo passado que herda. Passado de quem leu Tolstoi, Tchekov, e agora tem que se conformar com o fato de que “até as cerejeiras queimaram” (idem, p. 73).
A herança bárbara e grotesca que pelos próximos 900 anos, pelo menos, impedirá a normalidade da vida em um pedaço de chão de mais ou menos 4.200 quilômetros quadrados. Um baú de recordações vivas entocadas por dentro de um sarcófago, peça rara de engenharia militar que acoberta centenas de toneladas de plutônio, urânio e demais metais pesados e radioativos. Depoimentos transcritos por meio da metodologia da história oral, utilizada pela autora, são socializados ao leitor, que parece ouvir da própria voz de cada um dos personagens algumas confissões, como no fragmento a seguir: “Em casa, tirei toda a roupa que usei e joguei no lixo. Mas dei o barrete para o meu filho pequeno. De tanto que ele me pediu. Pegou e não largou mais. Depois de dois anos veio o diagnóstico: tumor no cérebro” (idem, p.108).
O contato precoce com a morte fez parte da vida de todas as crianças nascidas nos anos oitenta entre a Bielorrússia e a Ucrânia. Não houve sequer um ser humano que não fosse contagiado pelo discurso da desesperança, em contraste com o orgulho projetado em cada um pelos dirigentes partidários. Mas a verdade foi dura demais com a família de todos. “Na nossa aldeia deixaram três cemitérios: em um, descansam as pessoas, é o mais velho; em outro, os cachorros e gatos que tivemos de abandonar e que fuzilaram; no terceiro, as nossas casas” (idem, p. 228).
Alguns especialistas apontam o desastre nuclear como o início da derrocada do gigante soviético, cuja transformação já se desenhava pelas mãos de Gorbachev. A cegueira tecnológica que hoje é realidade vem se desenhando desde sempre, acelerada pela revolução industrial, coroada pela ascensão nazi-facista há cem anos, com resultados presentes na política e economia global. “Tchernóbil explodiu contra o fundo de um total despreparo da consciência e absoluta fé na técnica” (idem, p. 257). Líderes de uma massa com pouca consciência crítica têm surgido em todo o planeta, silenciosamente. O avanço de ideias retrógradas não tem partido, nação, mas é movido por uma ideologia, sim. “Compreendi que na vida as coisas mais terríveis ocorrem em silêncio e de forma natural” (idem, p. 263).
São absurdos os números do episódio. “Há pouco tempo publicaram nos jornais que em 1993 as mulheres da Bielorrússia fizeram 200 mil abortos. E a primeira causa era Tchernóbil” (idem, p. 264). Até hoje se sentem os efeitos da radiação sobre a gestação em mulheres da região, afinal, o poder de fogo da explosão equivale a uma “quantidade equivalente a 350 bombas atômicas como a que lançaram sobre Hiroshima.” (idem, p. 322). A guerra fria produziu inúmeros mitos, dividiu o mundo, reproduziu animosidades. “O homem inventou uma técnica para a qual ainda não está preparado (…). É possível dar uma pistola a uma criança? Nós somos crianças loucas” (idem, p. 327). Escritores são pessoas dotadas da capacidade de articulação de discursos que fazem com que se pense. Por mais fantasiosa que seja a obra de arte, é sabido que “não há fronteiras entre o fato e a ficção, um transborda sobre o outro (…). Ao narrar, o homem cria, luta com o tempo, assim como o escultor com o mármore. Ele é um ator e um criador” (idem, p. 373).
Svetlana tem a palavra a seu dispor. Faz do idioma um bunker. O construto de sua pena reverbera e transcende a fronteira entre a realidade e os sonhos. Ela sabe que “Os documentos são seres vivos, eles mudam junto conosco” (p. 375). A literatura coroa a amplitude do saber. A nós, cabe a expectativa de olhar para seus objetos com olhos marejados de quem acredita que ainda podemos fazer diferente.
REFERÊNCIA
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. A história oral do desastre nuclear. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.