Um ensaio de Márcia Denser
A escritora paulistana Márcia Denser publicou Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (Global, 1986), Diana caçadora/Tango fantasma (Ateliê, 2003, 2010, 2a.edição), A ponte das estrelas (Best-Seller, 1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II – obra escolhida (Record, 2008) e DesEstórias, crônicas e artigos (Kotter Editorial, 2016). Organizou as três antologias Muito prazer e O prazer é todo meu (Record) e Os apóstolos (Nova Alexandria), participando de dezenas de coletâneas no Brasil e no Exterior. É traduzida em nove países e em dez idiomas: Alemanha, Argentina, Angola, Bulgária, Estados Unidos, Espanha (catalão e galaico-português), Holanda, Hungria e Suíça. Dois de seus contos – “O vampiro da Alameda Casabranca” e “Hell’s Angel” – foram incluídos nos Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, sendo que “Hell’s Angel” está também entre os Cem Melhores Contos Eróticos Universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista.
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QUERIDA MAMÃE TERRÍVEL
– Um conto escrito com a técnica da inversão no paradigma da adversidade e sob a ótica do oprimido –
– análise da obra em construção de Lindevania Martins –
Quando mamãe está por perto, não gosto de mim. Quando mamãe está por perto, quero ser uma menina sem mãe. Quando mamãe está por perto, desejo morrer.
Autora de quatro livros (Anônimos, 2003, contos; Zona de Desconforto, 2018, contos; Longe de Mim, 2019, contos; Fora dos Trilhos, 2019, poesia), a maranhense Lindevania Martins constrói uma sólida obra dentro da contística contemporânea, fiel à sua perspectiva recorrente que é a ótica do oprimido(a) até mesmo nos contos eróticos.
A perpectiva daqueles que não escrevem a História com H maiúsculo, um trabalho esplêndido e implacável que coube à Literatura testemunhar.
A primeira coisa que me ocorreu na leitura de Querida Mamãe (publicado em Zona de Desconforto) foi a lembrança do filme Mamãezinha Querida (1981) com Faye Dunaway, direção de Frank Perry que trata da relação terrivelmente abusiva, injusta e cruel entre Joan Crawford e sua filha adotiva Cristina, sob o testemunho desta última. O conto reproduz uma relação idêntica.
Numa sala de aula, a professora Elza pede aos alunos uma redação-prova sobre membro da família mas a narradora-aluna, numa recusa imediata do objeto da narração, pede para escrever sobre a família de outra pessoa. Negado seu pedido, ela, cuja família é composta da mãe e duma empregada Cora, inicialmente decide falar sobre seu tio Chico.
Escreveria sobre o tio Chico, embora ele morasse em outro bairro e eu quase nunca visse esse tio. Tio Chico não seria outra pessoa senão mamãe disfarçada de tio, mamãe de pernas peludas, mamãe de barriga grande, mamãe arrotando cerveja. Comecei. O título era “Querido Tio Chico”.
Aqui observamos o uso parodístico da técnica de inversão – inversão do sexo e do personagem que o narrador precisa ocultar.
Sob o ponto de vista psicológico, surge uma figura do Animus – o primeiro estágio na descida do inconsciente rumo ao centro da Mãe Terrível – ainda manobrável pela narradora-criança.
No começo escrevi direitinho, mas logo passei a dizer que Tio Chico fazia as coisas que na verdade só minha mãe fazia. Disse, por exemplo, que o tio trabalhava viajando, mas o tio nunca viaja, é minha mãe que passa vários dias cuidando da minha avó que mora em outra cidade. Também não fui esperta em outras coisas. Troquei o pronome “ele” pelo “ela” em várias passagens, troquei o adjetivo masculino pelo feminino. Chateada, risquei substantivos como “maquiagem” e “meia de seda”, que denunciavam claramente que eu falava de mamãe e não do tio Chico. O papel branco ficou cheio de borrões azuis. No centro da sala, a professora sentada na cadeira dela folheava uma revista de moda. Observei a prova com tristeza. Com tantos erros e borrões, ela me daria zero na mesma hora. Eu viraria chacota na turma. Acabei desistindo de falar do tio.
A redação vai ficando cheia de borrões e rasuras, então ela pede para recomeçar. E a “confissão” por escrito – de que odeia a querida mamãe – passa a ocorrer efetivamente, incorrendo no pecado original ou sacrilégio psicanalítico no sentido de quem “mãe não se odeia” e a pena para quem o comete, também no pressuposto psicológico, é a morte ou a loucura. É ser engolido pelo arquétipo da Mãe Terrível, caracterizando um processo demencial.
É que com mamãe perto, não consigo fazer nada direito.
Não consigo dormir porque ela diz que durmo demais e fico tentando contar as horas de sono pra não exagerar e ela deixar de gostar de mim.
Não consigo comer porque ela diz que sou gorda e que nenhuma menina deveria ser gorda aos doze anos de idade.
Não consigo me arrumar porque quando mamãe está perto, todas espinhas do meu rosto eclodem, todos os fios dos meus cabelos insistem em apontar para cima e não há nada que possa dar jeito.
Não consigo apreciar meus amigos que, segundo ela, são feios, burros e preguiçosos, e é assim, como feios, burros e preguiçosos, que passo a enxergar Bruno, Tamara e Edite.
Mamãe diz que tudo que ela quer é me transformar numa mulher bonita e respeitável. Dessas que usam maquiagem cara e meias de seda. Mas não quero ser bonita, não quero ser respeitável como mamãe quer. Sinto que de outro modo, já sou bonita e respeitável. Mas como mamãe duvida, duvido também.
Quando a minha mãe está aqui, uma voz dentro da minha cabeça diz que devo crescer logo para ser melhor que ela, para me livrar dela. Quando a minha mãe está aqui, uma voz dentro da minha cabeça diz que não conseguirei crescer.
O arquétipo de Mãe Terrível sempre devora seus filhos, é um obstáculo à vida e seu desenvolvimento, razão pela qual precisa ser abandonada e superada.
Infelizmente, ao longo da narrativa, tal não ocorre, esta vai sendo dotada de poderes extraordinários como a onisciência (ela sempre sabe tudo o que faço!) e a onipotência (compra as pessoas para vigiar e dominar a narradora,etc.), tornando-se um poder contra o qual é inútil lutar e a tal ponto que engole toda a narração e a vida que desaparece e sucumbe diante do seu amplexo mortal.
Por isso este é um conto na linha da denúncia e da interrogação existencial, um dos pontos fortes da intensa narrativa de Lindevania Martins cuja obra em construção promete crescer a cada livro publicado.