Um ensaio de Maria Elizabete Nascimento de Oliveira
Maria Elizabete Nascimento de Oliveira é doutora em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, com a tese intitulada Dunga Rodrigues: uma jornalista no território da ficção (2019). Mestre em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT, com a pesquisa que originou o livro Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos (Editora Paulinas, 2012). Especialista em Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas pela Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT-Campus de Tangará da Serra (2001). Graduada em Letras/UNEMAT-Cáceres (1998). Professora da Rede Pública de Ensino de Mato Grosso desde 2002. No momento, atua como professora formadora da área da linguagem no Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica/CEFAPRO-Cáceres-MT. Membro do Projeto de Pesquisa: No Centro-Oeste da “Margem”: cem anos de relações entre cultura e literatura em Mato Grosso (1916-2016).
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O ROMANCE MARPHYSA, DE DUNGA RODRIGUES: O ESPELHO FEMININO NO/COM O REFLEXO DO CORONELISMO
Este é apenas um pequeno recorte do romance Marphysa: ou o cotidiano de Cuiabá nos Tempos de Candimba, das Touradas do Campo d’Ourique e das Esmolas do Senhor Divino (1981), de autoria de Maria Benedita Deschamps Rodrigues, mato-grossense ainda pouco estudada pela crítica, doravante Dunga Rodrigues, como ficou conhecida na região. Uma mulher para além do seu tempo que soube registrar com sagacidade e humor a cultura do Estado de Mato Grosso em seus diferentes aspectos, desde o interior das casas cuiabanas, com seus móveis coloniais, seus quintais onde predominavam as brincadeiras das crianças e as conversas sobre o cotidiano, aos elementos que envolveram a política coronelista e a economia da época, em uma sociedade que começava a viver as transformações modernizantes do final do século XIX e início do século XX.
O título do romance já demarca três pontos importantes de onde a narradora de Marphysa está a tecer sua “colcha de retalhos”, aqui entendida como uma unidade colorida de vivência e pesquisa que encontra substância nos elos entre um retalho e outro. O primeiro apresenta a vida cotidiana em Cuiabá em um tempo em que se acreditava nas lendas, já que Candimba era uma figura enigmática que viera parar em Cuiabá por ter batido na mãe, portanto, recebera como castigo morar em uma região distante das grandes metrópoles; o segundo denota os traços da colonização, em que as touradas provenientes dos portugueses eram diversões principais; o terceiro demarca as festas religiosas ainda cultuadas em Mato Grosso, com as esmolas do Senhor Divino, Dunga ironiza a relação entre as doações à igreja e os benefícios que os coronéis recebiam na época pelas “oferendas”. No entanto, neste momento, nosso foco de reflexão é apenas a personagem principal do romance, Marphysa. Com ela destacamos que o fio que costura as pequenas narrativas que compõe o enredo é feminino e representa nuances de como as mulheres cuiabanas eram vistas e tratadas na/pela sociedade da época.
A protagonista é Marphysa da Costa Campos Gusmão Gomides, única filha mulher de “D. Eleutéria Thomazia da Costa Campos Gusmão, Tetéia para os íntimos, porque mais tarde o nome comprido só era usado para assinar documentos” (RODRIGUES, 1991, p.17, grifo nosso) e do coronel Gusmão “Autor dos meus dias, como dizia esta, mais tarde, enfaticamente” (RODRIGUES, 1991, p.23, grifo nosso). O apelido Tetéia carrega, em si, significados simbólicos que imprimem à mulher sua condição de bibelô, de coisa a servir de decoração, de fragilidade, de algo sensível e passível de cuidados, mas que estava a cuidar dos filhos e da casa, bem como servia para ostentar a fortuna do marido e a assinar os documentos, coisas “sem valor”, mas que colocava o marido e/ou pai em lugar privilegiado na sociedade que, na época, era sustentada pelo poderio econômico e pela aparência. É importante observar a sonoridade oposta entre os nomes de D. Tetéia e do Coronel Gusmão, de um lado a submissão e de outro a força do poderio que emana, sobretudo, do apêndice do nome do patriarca.
Marphysa recebeu o nome da madrinha de batismo, inclusive o sobrenome Gomides, ela era sensível à arte, aprendera tal qual a autora Dunga Rodrigues, a tocar piano, a declamar poemas e, também, aprendera as primeiras letras com Dona Joaquina Ferreira Lima, a Dona Joaquininha como era tratada carinhosamente pela autora. Se por um lado a narradora apresenta D. Joaquininha como um ser dócil, marca também sua subversão com a ruptura do casamento. Vale destacar nesse momento que a profissão docente foi por muito tempo vista como uma extensão da maternidade. A primeira lei de instrução pública brasileira, datada de 1827, destacou que “as mulheres carecem tanto mais de instrução, porquanto são elas que dão a primeira educação aos filhos. […] os homens moldam a sua conduta aos sentimentos delas (LOURO, 2004, p. 447). Momento em que surgem as escolas normais, juntamente com o discurso de modernização do país em que “uma série de rituais e símbolos, doutrinas e normas foram mobilizados para a produção dessas mulheres professoras” (LOURO,p. 455). Em Cuiabá, essa realidade não foi diferente.
A protagonista foi, também, matriculada na Escola modelo Barão do Melgaço, outro espaço de formação da autora, e nas férias, a convite da madrinha, embarcava sempre ao Rio de Janeiro, lugar que lhe abriu novos horizontes, já que a cidade era vista como “um banho de civilização” em contraponto com “o longínquo e limitado berço natal”, a pacata cidade de Cuiabá. Tal qual Dunga Rodrigues, Marphysa que no romance é, também, tratada por Physinha e Fiinha, vivia absorta em viagens, especialmente ao Rio de Janeiro.
Conta a narradora que a desenvoltura de Physinha, em contraste com a timidez das moças do lugar, foi um fator que a fez engordar de vez em quando, mas como esta contava com o poder do dinheiro do pai e o acolhimento da madrinha no Rio de Janeiro conseguia resolver o problema sem maiores escândalos. Descrição que remete à gravidez clandestina que era resolvida sem maiores alardes quando a família era abastada, em caso contrário, à mulher pagava o preço que lhe era dado pela sociedade convencional da época, tornando-se ‘puta’ e ‘mal falada’.
A trama segue com o casamento de Marphysa com Theobaldo, um forasteiro, ou como dizia daqueles que passavam por várias regiões e paravam em Cuiabá, um pau-rodado que chegara à cidade, com ares de moço rico e bem sucedido. Sem grandes delongas Physinha é dada a Theobaldo, que era apenas uma farsa criada por ele mesmo, fazendo da vida da protagonista um ambiente nebuloso e triste, elementos que em nada combinavam com a personalidade de outrora da protagonista, de mulher decidida e aventureira. Ao descobrir a farsa sobre a real identidade do marido e genro, pobre e sem dotes, acaba-se o casamento de Marphysa e a carreira política do coronel Gusmão, já que ele vivia de aparências.
Com o término do casamento, segue uma análise introspectiva da protagonista ao relembrar suas aventuras de solteira, bem como suas andanças por terras vizinhas até chegar em Vila de Mimoso, uma região festiva de Mato Grosso, onde segundo a narradora, a protagonista fez as pazes consigo mesma. Nesse cenário, há alusão ao gosto de Physinha, que outrora desdenhava de “rapazes sem anel e canudo” e passou a ter gosto por “pé rapado”, caso de Theobaldo e de um possível flerte com Morro Grande, um moço da região de Mimoso.
[…] Moreno torrado, alto, desbarrigado, dentes claros e perfeitos, além do mais, com foros de valentia, era a coqueluche ou Xodó, como se dizia, das moças que chegavam a conhecê-lo. Os seus conhecimentos eram limitados. Só boi, vaca, e cavalos, mais os casos de valentia. Mas, quem se lembraria de literatura, diante de um tipo apolíneo, tostado de sol, além de limpo e bem cheiroso? (RODRIGUES, 1981, p.77).
Nessa passagem reforça-se o tom jocoso que permeia toda a produção da autora, uma característica peculiar que envolve o leitor em um clima de aproximação com a narrativa que segue muito próxima da linguagem popular e vivência do povo cuiabano, mas que não se limita a traçar elementos regionais. É importante observar que na narrativa o conhecimento intelectual é inegável, sobretudo, sobre outras culturas e campos do saber. Portanto, trata-se de uma linguagem simples e não simplória.
A narrativa segue sem citar o destino de Marphysa, até que, em um adiantado do enredo, ela reaparece em viagens entre Londres/Inglaterra à Capitólio/MG. Viagens que, segundo a narradora, lhe conferiram status e classe para estar dentre as celebridades no Rio de Janeiro e fisgar um novo marido, agora, um pretendente rico chamado Victor Nogales Ortiz, uruguaio, com quem se casa novamente, assim: “[…] se instalou no palacete da família, que coube a seu marido de herança, já que filho único, no coração da elite financeira do país, bem no centro do bairro Carrasco”. (p. 115) Foi nesse cenário que, segundo a narradora, Marphysa se livrou dos “peagás e ipsilones” do seu nome de batismo, passando a se chamar Consuelo, já que o marido começara a implicar devido à pronúncia complexa para a língua espanhola.
Marphysa, agora D. Consuelo, até em documento, tornou-se acolhida no meio social portenho, como descreve a narradora, lugar onde criou seus filhos e os encaminhou na vida com a fortuna que o marido multiplicou, tornando-os bem sucedidos em Montevidéu. A narrativa finaliza com uma analogia sobre o retorno de Marphysa a Cuiabá:
Dizem que certos pássaros, pressentindo o término de suas vidas, correm ou voam para a terra de origem onde viram a primeira luz do dia. Este pressentimento teria movido Physinha, hoje Consuelo, a largar tudo, filhos, netos, convívio com amigos, conforto de um palacete de doze quartos, dois vastos salões, jardins e piscina, para se instalar no meio do mato aqui em Cuiabá (RODRIGUES, 1981, p. 118).
D. Consuelo retornou como estrangeira e estranha em sua própria terra, haja vista as diversas mudanças que ocorreram em vários setores da sociedade cuiabana, vindo a falecer em seguida, nem os filhos compareceram ao funeral. Marphysa e/ou D. Consuelo encontra-se, segundo a narradora, enterrada no Cemitério da Piedade em Cuiabá: “[…] num mausoléu discreto, mas de material de fina qualidade, lê numa placa estes dizeres: linda como a rosa, mas eterna como bronze, no coração da família” (RODRIGUES, 1981, p.119). A perspicácia da autora ao criar a personagem é envolvente, nem a troca de nome fez com que ela perdesse a identidade, tanto que viera morrer em sua terra natal, porém, a família não pertencia ao lugar e nem a ela, já que fora “engolida” pelo capitalismo. Esse é outro aspecto importante, na produção da autora, embora não iremos aprofundar nele neste momento, a representatividade do lugar enquanto pertencimento.
Plasmam na obra imagens que nos ajudam a afinar as diferenças entre as vozes femininas das personagens e os ecos da história oficial da cidade de Cuiabá, especialmente ao que se refere à condição feminina, o jogo dialético entre a ficção e a realidade, o poder da arte de nos suspender e, ao mesmo tempo, nos devolver à realidade. São, portanto, as lacunas e os silêncios da memória e da história, os substratos do fio estético com o qual Dunga Rodrigues alinhava as histórias à personagem Marphysa. Ou melhor dizendo, como a figura feminina, especialmente Marphysa, representa e funciona como fio estético que costura e atribui organicidade às histórias da cultura cuiabana, fornecendo a unidade necessária à estrutura discursiva do romance.
Nesse cenário, em que figuram os fragmentos da cultura cuiabana pelo olhar de Dunga Rodrigues, o palco é a cidade de Cuiabá; mas o enredo é o tecido habilidoso da camada imaginária, como diria Antonio Candido (2014, p.56), lugar onde mesmo considerando uma unidade, há descontinuidades, rupturas e labirintos que desestabilizam e lançam o leitor à aventura interminável que é a busca do conhecimento de si e do outro. No que concerne à figura feminina, várias outras mulheres que viveram na época estão representadas no romance, como que para registrar que elas tiveram papel importante na luta feminina por um espaço social que lhes é de direito. Porém, não podemos ignorar a configuração do Coronel Gusmão no romance, ou seja, mesmo Marphysa sendo a protagonista, a figura máscula do “autor dos seus dias” faz-se presente em quase todos os cenários da narrativa.
O caráter peculiar dessa obra é inegável, Marphysa é ao mesmo tempo uma personagem subversiva e alienada. De um lado ela tem espírito aventureiro, volúpia para ir em busca dos seus desejos de mulher; por outro é dependente da fortuna do pai e depois do marido, uma personagem desnudada pela narradora, com diferentes faces e fases. Com Marphysa, Dunga apresenta uma literatura com rosto de mulher, mas com o reflexo do coronelismo, tecida pela memória (lacuna entre o esquecimento e a lembrança) na periferia, fora do cânone da própria região e talvez aqui resida uma das peculiaridades da literatura como espaço de liberdade, de crítica, de resistência, de existências. Lugar onde há a união dos fragmentos do corpo feminino, mostrando que na literatura as peculiaridades não nos distanciam, pelo contrário, podem nos unir em irmandade, (re)conhecendo os próprios retalhos.
Finalizo, por ora, destacando que este é um recorte oriundo da minha pesquisa de doutoramento intitulada Dunga Rodrigues: uma jornalista no território da ficção (2019), que, por sua vez, também se refere a outro recorte, em que apresento a importância da autora no cenário da cultura em/de Cuiabá, com foco na sua trajetória do jornalismo ao universo do romance. Digo recorte porque há muito, ainda, a se falar sobre Dunga Rodrigues e sua bagagem intelectual composta por: lenda, poesia, conto, crônica, registro docente, diário de viagem, música e pesquisa historiográfica.
REFERÊNCIAS
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das letras, 1994.
CANDIDO, Antonio, et alii. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva; 2005.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993.
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2003.
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
RODRIGUES, Dunga. Marphysa: romance de costumes (ou o cotidiano de Cuiabá nos tempos do Candimba, das touradas do Campo d’Ourique e das Esmolas do Senhor Divino. Cuiabá: FUFMAT/NDIHR, 1981. (Coleção Memória Social da Cuiabania, 1).