Um ensaio de Regina da Silva Ferreira
Regina da Silva Ferreira formou-se em Letras – Habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal de Mato Grosso em 2019. É pós-graduanda em Docência do Ensino Superior pela Faculdade de Administração, Ciências e Educação.
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O uso de novas tecnologias na literatura
O advento da internet no final da década de 60 mudou a forma como nos relacionamos com o mundo. Até então o homem não precisava de internet, computador, celulares e mídias sociais para viver em sociedade. Na literatura, ao longo dos anos, os artistas utilizaram os avanços tecnológicos em seu benefício, produzindo e reproduzindo suas obras inicialmente utilizando caneta e papel, posteriormente, máquinas de escrever e, mais recentemente, computadores, para registrar o que antes era oral. Atualmente a mudança se faz mais profunda, não se trata apenas da invenção de meios para impressão e publicação de livros como no passado, mas de uma nova forma de produzir e reproduzir literatura. Segundo Hayles (2007), a história da literatura está ligada à evolução da tecnologia, a medida que se constrói onda após onda de inovações.
Essa transformação fornece um novo questionamento sobre o que é ou não literatura e pode não somente redefinir o conceito tradicional, mas também possibilitar a criação de novos gêneros textuais. Rettberg (2018) observa que é um desafio definir literatura eletrônica, pois provavelmente nos próximos dez anos tal definição será obsoleta. Apesar disso, em 2004, conforme Rettberg (2018) observa, a Electronic Literature Organization, criada em 1999, definiu a literatura eletrônica (e-lit) como obras de aspectos literários relevantes que utilizam as ferramentas e contextos fornecidos pelo computador e pela internet. Já para Hayles (2007) a literatura eletrônica é aquela nascida em meio digital, não digitalizada, uma obra de primeira geração criada em um computador e geralmente destinada a ser lida em um computador. Essa definição retrata a diferença entre um e-book e uma obra de e-lit, por exemplo.
Para melhor compreensão do que é literatura eletrônica, façamos a análise de dois gêneros: ficção de hipertexto e gerador de poesia. O primeiro será representado pelo trabalho Charmin’ Clearly, de Edward Falco e o segundo pelo gerador de poesia Peter’s Haiku Generator, criado por Peter Howard em 1996, em funcionamento até a presente data.
A ficção de hipertexto é caracterizada por estruturas de ligação e, de acordo com Rettberg (2018), foi a primeira forma de literatura eletrônica a obter interesse crítico sustentado durante o final da década de 1980 e o início da década de 1990. Neste gênero, o hipertexto funciona como uma ponte entre a literatura impressa e a digital. Charmin’ Cleary, de Edward Falco, é uma representação desse gênero textual e dessa nova forma de produzir literatura. A obra criada por Falco está disponível para ser lida apenas através da utilização de um computador. O enredo aborda um incidente ocorrido entre a adolescente Charmaine Cleary, famosa jogadora de basquete, e seu professor.
O autor desenvolve o enredo utilizando as ferramentas digitais e hipertexto para separar os diferentes pontos de vista referentes à mesma história. Assim, o leitor pode escolher por qual abordagem iniciará a leitura sendo necessário navegar por todas para compreender o que de fato ocorreu. Os diferentes pontos de vista são identificáveis por cores diferentes na primeira letra, conforme tela abaixo. “Her Story”, possui a primeira letra em vermelho, identificando o ponto de vista de Charmaine Cleary, “His Story”, em verde, o ponto de vista do professor e em azul, o ponto de vista dos outros alunos, entitulado “The Other Guy’s”. Esta é uma observação importante e caberá ao leitor perceber e entender como navegar pela obra visto que o hipertexto não é claramente demarcado. Leitores que não estão familiarizados com as mídias digitais podem apresentar dificuldades para interação com o programa e se perder durante a leitura. A tela abaixo mostra a aparência da primeira “página” do texto.
Fonte: http://www.eastgate.com/Charmin/pages/title.html
Para iniciar a leitura, o leitor deve clicar em um dos títulos. Ao escolher um dos links, o leitor será encaminhado para a primeira página digital, a primeira letra do primeiro parágrafo também inicia com uma das três cores, indicando o ponto de vista escolhido pelo leitor. Esta é uma informação importante, pois ao longo da leitura o leitor poderá ser encaminhado para o outro ponto de vista dependendo em qual parágrafo da página clicar. Por exemplo, se o leitor clicar no primeiro parágrafo, será direcionado para o ponto de vista de Charmaine Cleary (Her Story), se clicar no meio da página, ele será direcionado ao ponto de vista do professor (“His Story”) e, se o leitor clicar no final do texto, será direcionado ao ponto de vista “The Other Guy’s”. Este redirecionamento independe do ponto de vista escolhido anteriormente.
A interação com o texto é realmente um ponto interessante neste trabalho, o leitor pode escolher por onde começar e também pode mudar o ponto de vista durante a leitura sem a necessidade de retornar à primeira página. É importante ressaltar porém, que o hipertexto não é claro e as páginas virtuais também não seguem uma sequência nítida, ainda que apresentem o mesmo ponto de vista. O leitor precisa interagir com o texto como um quebra-cabeça, juntando as partes da história para sua completa compreensão. A obra é intuitiva, não há explicações sobre o sobre como o hipertexto funciona e o leitor pode abrir a mesma página ou capítulo várias vezes até encontrar o caminho a seguir ou descobrir que não há mais páginas para ler. A forma como o leitor interage com o texto e o funcionamento do hiperlink se aproxima da forma como a própria história foi criada, sendo o leitor inserido em um labirinto no qual precisa escolher por si mesmo o caminho a percorrer para descobrir o que ocorreu.
As obras criadas para serem lidas utilizando ferramentas digitais podem esbarrar na dificuldade do leitor que não possui conhecimento suficiente para interagir com o programa. Problema assemelhado ao enfrentado pelos escritores quando imprimiram seus primeiros livros, o acesso às suas obras só era possível à população alfabetizada, sendo a língua um código a ser decifrado pelo leitor. Da mesma forma os programas de computador possuem linguagem digital e se o leitor não for capaz de decodificá-la não poderá apreciar a obra. No entanto, assim como ao longo dos anos a alfabetização passou a ser acessível à quase totalidade da população, o conhecimento da linguagem digital se ampliará de tal forma que não será um problema em um futuro próximo.
A ficção de hipertexto pertence à primeira onda de e-lit; nesse caso, o autor se utiliza das ferramentas disponíveis na mídia digital para escrever e contar uma história que será lida através de um computador. Ainda assim, há um ser humano por trás da criação tanto do software quanto do enredo e a forma como este será apresentado. Existe entretanto, outro gênero de e-lit no qual o homem está presente apenas no desenvolvimento do programa gerador do conteúdo, a obra propriamente dita será produzida de acordo com a programação do software combinando e recombinado palavras e sígnos linguísticos. Conhecido como a segunda onda da e-lit são mais comuns na poesia que na prosa pois a linguagem e a inteligência artificial ainda não estão desenvolvidas a ponto de gerarem conteúdos mais complexos.
Segundo Rettberg (2018), uma das maiores questões relacionadas a um poema criado por um programa de computador utilizando os geradores de poesia, por exemplo, é sobre autoria. Nem todos os geradores de poesia serão capazes de produzir um poema que possua um conteúdo interessante, mas este não é o objetivo principal deste tipo de literatura. Enquanto que em um poema tradicional o leitor busca a singularidade, ao interagir com o programa de computador o que se busca é a multiplicidade. A produção de uma obra-prima não é o objetivo de um gerador de poesia, mas sim a interação e a experiência literária que este pode disponibilizar.
O gerador de poesia Peter’s Haiku Generator, é um exemplo deste tipo de programa, foi criado por Peter Howard em 1996 e continua ativo. Apesar de sua longevidade na internet, é importante observar que esse gerador de poesia foi criado utilizando a linguagem de programação Javascript, criada em 1995, com o avanço da tecnologia este tipo de linguagem tende a se tornar obsoleta e o site pode não ter mais suporte tecnológico para continuar ativo. Essa é uma das questões relevantes quando se fala em literatura eletrônica, a longevidade de uma obra criada dependerá da longevidade da linguagem de computação utilizada e do suporte tecnológico disponível para que se mantenha em funcionamento, mesmo com o surgimento de novas tecnologias.
O programa criado por Howard possibilita ao leitor, através de um clique, a geração de haicais e tankas automaticamente a partir dos algorítimos utilizados pelo software. O leitor inicia sua experiência clicando no botão “Please Begin” e, em seguida, seleciona o vocabulário que o gerador usará. Além de escolher entre haicais ou tankas, o leitor também pode selecionar entre os seis tipos de vocabulário disponíveis, previamente definido e limitado a 400 palavras: standard, erotic, silly, noir, noir silly ou light.
Utilizando o vocabulário standard, que, segundo Howard, é composto por palavras retiradas de traduções do haiku japonês, foi gerado o poema a seguir:
Green wisdom loiters.
Hell talks then poverty plays.
A green spice moves lakes.
O exemplo a seguir foi gerado a partir da seleção do vocabulário noir, caracterizado por Howard como escuro, algumas vezes urbano e violento.
An empty scream talks.
Smoothly touching, a broad waits.
Screams dance yet dogs run.
Summer splits and prospects wake.
Burning eagerness dances.
Os dois poemas foram gerados automaticamente pelo programa de computador, após a seleção do vocabulário e tipo. Nesse caso, não há por trás da máquina a inspiração criativa de um ser humano, os poemas são gerados ao acaso, friamente por um programa de computador. Para alguns leitores a experiência de gerar poemas através do programa é mais interessante do que o próprio poema em si. No entanto, para os leitores que esperam a expressão do autor nos versos gerados, a experiência pode se tornar frustrante. Como citado anteriormente. há ainda o questionamento sobre quem seria nesse caso o autor do poema, o criador do programa de computador? O leitor que gera o poema? Ou o escritor dos poemas originais dos quais foram retirados o vocabulário?
Outra questão a ser levada em consideração é o caráter efêmero do poema gerado, ao clicar no link e gerar um novo poema o leitor perde para sempre o poema anteriormente gerado, pois este não é arquivado em nenhum banco de dados. Qual a importância da permanência da literatura e a sua relevância considerando as obras criadas através de geradores de poesia? Os poemas gerados aleatoriamente podem ou não ser considerados obras literárias?
Oscar Schwartz, em sua palestra no TEDx sobre o tema em 2015, iniciou seu discurso perguntando: Um computador pode escrever poesia? Após essa pergunta, várias outras surgiram: O que é um computador? O que é inteligência artificial? O que é criatividade? Essas são que vão além da literatura, são questões filosóficas que até hoje são complexas de definir. A arte ainda é uma expressão da alma humana, até o momento o homem está por trás do computador seja na criação do software ou do conteúdo.
A tecnologia está presente em todos os setores de nossas vidas. O homem está se adaptando para viver neste novo mundo e usá-la em seu benefício. De fato, a tecnologia continua se desenvolvendo e agora não é apenas uma ferramenta para reproduzir arte humana, é uma maneira de produzir arte e, consequentemente, produzir literatura. Chegará o tempo em que a inteligência artificial será capaz de substituir o homem no processo criativo, será que ainda teremos o mesmo conceito sobre literatura?
Referências
FALCO, Edward. Charmin’ Cleary. Disponível em:
http://www.eastgate.com/Charmin/pages/title.html. Acessado em: 02.20.
HAILES, N. Katherine. Electronic Literature: What is it? V1. January 2,2007. Disponível em:
https://eliterature.org/pad/elp.html. Acessado em: 02.20.
HOWARD, Peter. Peter’s Haiku Generator. Disponível em:
http://peterhoward.org/haikugen/framset1.htm. Acessado em: 02.20.
RETTBERG, Scott. Electronic literature. John Wiley & Sons, 2018.
SCHWARTZ, Oscar. Can a computer write poetry? Disponível em:
https://www.ted.com/talks/oscar_schwartz_can_a_computer_write_poetry/transcript. Acessado em: 02.20.