Um ensaio de Wender M. L. Souza
Wender M. L. Souza atua como redator publicitário/ revisor. Tem como formação a área de Letras, na qual carrega o título de mestre em Estudos Literários pela UFMT. É revisor dos livros As luzes que atravessam o pomar e outros contos (2018, Carlini & Caniato), Obscuro-shi: Contos e desencontros em qualquer cidade (2016, Carlini & Caniato) e Subterfúgios Urbanos (2013, Editora Multifoco), de Wuldson Marcelo; Scarlet e o branco (2012, Editora Multifoco), de Eliete Borges Lopes; Me LiterAtura (2016, Carlini & Caniato), de Rafaella Elika Borges; e da coletânea de contos e poesias Beatniks, Malditos e Marginais em Cuiabá: Literatura na Cidade Verde (2013, Editora Multifoco).
Este trecho compõe o artigo Narrador, o receptáculo da memória, originalmente publicado na Revista Magistro.
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Homens-Livros e a liberdade de narrar uma história
Em texto escrito em 1936, O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, Walter Benjamin diagnostica que a arte de narrar estava morta na sociedade contemporânea daquela época. Benjamin cita vários motivos para a extinção: o fato do homem não ter mais experiências para contar; o advento do romance com a publicação em livro, a demonstração de como o indivíduo está isolado entre outros.
O texto é um elogio ao narrador e a arte de narrar, assim Benjamin destaca dois grupos como os que têm o que contar: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. O primeiro é aquele que fica em sua terra natal e conhece suas histórias e tradições. O segundo, aquele que viaja e conhece outras terras e tem muito que contar.
A sabedoria, para Benjamin, é atributo dos bons narradores, esses têm que saber “dar conselhos”. É por este motivo que o narrador morre com o surgimento do romance, “A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1994, p. 201). O narrador perde a sua capacidade de aconselhar, e as próprias personagens também não escutam uma a outra, isto é sintomático à modernidade que apregoa o individualismo em detrimento à coletividade.
Neste ponto Fahreinheit 451, de Ray Bradbury, serve como exemplo, pois o individualismo alcança o seu cume, consolidando ao mesmo tempo a morte do indivíduo. Em um sistema totalitário, o indivíduo vive em si, paradoxalmente, em favor do bem-estar coletivo; ele é uma força produtiva, força do trabalho voltada para o Estado. Esse em si o faz alienar-se em frente a telões, em sua residência; correndo com automóvel em estradas; ou em remédios que os entorpece. O regime não permite a leitura, o ato é punível com prisão, entretanto, rebeldes resistem com leituras furtivas; quando são denunciados, têm a casa invadida e os livros queimados; os que conseguem escapar se escondem perto de trilhos no meio da floresta, onde vivem como foragidos/exilados e têm a “missão” de não deixar morrerem as obras. Em uma espécie de ritual, devem decorar o livro em pouco tempo e queimá-lo depois. Assim, reterão a história e contarão sem deixá-la morrer. Tornam-se, assim, homens-livros¹, “O melhor é guardá-los na cabeça, onde ninguém virá procurá-los. Somos todos fragmentos e obras de história, literatura e direito internacional. Byron, Tom Paine, Maquiavel ou Cristo, tudo está aqui” (BRADBURY, 2009, p. 214).
Entramos na importância do narrador para manter a história/memória viva. Nesta distopia criada por Bradbury, salienta-se o papel de resistência que possuem a leitura e o narrador. Nesta configuração, o ser humano volta à narrativa oral, a sociedade tecnologicamente avançada, mas sem arte e cultura, retorna aos seus primórdios para difundir as suas histórias ficcionais e seus pensamentos, mas antes de tudo a sua memória. Os homens-livros se assemelham aos homens-memórias dos povos primitivos ou da Idade Média, entretanto esses eram figuras centrais nas sociedades, diferentemente daqueles que deveriam viver à margem.
Todorov (2000) disse, com toda a razão, que os regimes totalitários do século XX suprimiram a memória, sistematizando esse propósito a controlavam e marginalizavam-na:
Las huellas de lo que ha existido son o bien suprimidas, o bien maquilladas y transformadas; las mentiras y las invenciones ocupan el lugar de la realidad; se prohíbe la búqueda y difusión de la verdad; cualquier medio es bueno para lograr esta objetivo (TODOROV, 2000, p. 12).
Para Jacques Le Goff (2003), o dominador do momento sempre se torna o senhor da memória e do esquecimento. No livro de Bradbury, o esquecimento se torna mais aterrador, porque são as pessoas, por quase um capricho, que respaldam a destruição dos livros por parte do regime. No meio da história Beatty, chefe dos bombeiros, explica a Guy Montag, o protagonista, quando e como os livros passaram a ser malvistos. Segundo ele, com a proliferação dos meios de comunicação de massa (rádio e TV):
― E, porque tinham massa, ficaram mais simples ― disse Beatty. ― Antigamente, os livros atraíam algumas pessoas, aqui, ali, por toda parte. Elas podiam se dar ao luxo de ser diferentes. O mundo era espaçoso. Entretanto, o mundo se encheu de olhos e cotovelos e bocas. A população duplicou, triplicou, quadriplicou. O cinema e o rádio, as revistas e os livros, tudo isso foi nivelado por baixo está me acompanhando? (BRADBURY, 2008, p. 83).
Bradbury conta, em 1953, uma história que poderia se passar como contada sobre o hoje, com a difusão da internet – que não chega para todos, mas como mostra a história nem todas as “revoluções” precisam contar com o apoio da maioria – e de meios de entretenimento que entregam vídeos em segundos, mas que são perenes. A sociedade de Fahrenheit 451 se iniciou porque a população gostou de ter tudo mastigado, resumido. “― Imagine o quadro. O homem do século XIX com seus cavalos, cachorros, carroças, câmera lenta. Depois, no século XX, acelere sua câmera. Livros abreviados. Condensações. Resumos. Tabloides. Tudo subordinado às gags, ao final emocionante” (Ibidem, p. 84). A sociedade se torna dinâmica, “A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?” (Ibidem, p. 85).
A descrição de Beatty sobre a sociedade daquela cidade se assemelha a nossa, claro que o autor potencializa a situação, mas para uma obra escrita na década de 50, do século XX, é quase premonitória:
― Tirar tudo dos teatros, exceto palhaços, e instalar nas salas paredes de vidro e nelas fazer passar muitas cores alegres, como confetes, sangue, vinho tinto ou branco (Ibidem, p. 86). ― Mais esportes para todos, espírito de grupo, diversão, e não se tem de pensar, não é? (…) Mais ilustrações nos livros. Mais figuras. A mente bebe cada vez menos. Impaciência. Rodovias cheias de multidões que vão pra cá, pra lá, a toda parte, a parte alguma. Os refugiados da gasolina. Cidades se tornam motéis (…) (Ibidem, p. 87).
E esse presente descrito por Beatty é um possível futuro alardeado por Bradbury. Diz-se que ele ocorreu, não com essas consequências “apocalípticas”, um pouco menos. Cada vez se lê menos ou inversamente cada vez mais. Mas quais são as obras mais lidas? A parte do apocalíptico fica na guerra no final do livro, uma guerra descrita aos moldes da Guerra do Iraque do final do século XX, e da outra do início do XXI, combates feitos à distância, pessoas atingidas sem saber de onde veio à bomba.
A sociedade de Fahrenheit 451 é feliz porque não pensa e nem se lembra, pessoas casam e logo esquecem como se conheceram; divorciam-se, casam-se de novo, e esquecem o cônjuge anterior, no caso de viuvez, do morto. A sociedade não tem memória, muito menos possui uma relação com a natureza. Porém, esta sociedade possui antagonistas, como a família de Clarisse McClellan que não assiste ao “telão”, e prefere passar as suas noites conversando. A moça sente prazer em seu contato “orgânico” com o mundo; é esta personagem que chama Montag a observar o que acontece ao seu redor:
E outras tantas vezes ele saiu de casa e Clarisse estava lá, em algum lugar do mundo. Uma vez ela saiu sacudindo uma nogueira, outra vez a viu sentada no gramado tricotando um suéter azul, três ou quatro vezes ele encontrou um buquê de flores tardia em sua varanda ou um punhado de castanhas num saquinho, ou algumas folhas mortas ordenadamente presas numa folha de papel em branco pregada com percevejos à porta de sua casa (Ibidem, p. 48).
― […] Você já cheirou folhas secas? Elas não cheiram como canela? Pegue. Sinta.
― Puxa é verdade. Dá para achar que é canela mesmo. Ela olhou para ele com seus brilhantes olhos escuros (Ibidem, p. 49).
Se Benjamin atribuía ao romance a morte do narrador, na obra de Bradbury são os livros, incluso o romance, que o ressuscita e conta a história universal, mas, presumivelmente do modo que o pensador alemão gostaria, coletivo e oralmente. Fahrenheit 451 é uma apologia ao livro, mas acima de tudo ao conhecimento, à sabedoria, à história, à memória, tanto que Faber, um ex-professor, explica a Montag que tudo o que está nos livros está na vida:
― […] Não é de livros que você precisa, é de algumas coisas que antigamente estavam nos livros. As mesmas coisas poderiam estar nas ‘famílias das paredes’ […] Descubra essa coisa onde puder, nos velhos discos fonográficos, nos velhos filmes e nos velhos amigos; procure na natureza e procure em você mesmo. Os livros eram só um tipo de receptáculo onde armazenávamos muitas coisas que receávamos esquecer (Ibidem, p. 120).
No enredo do livro, há duas personagens que não têm falas, mas demonstram a importância da sabedoria ressaltada por Benjamin em seu artigo. O tio de Clarisse, muito citado por ela, “[…] Você já foi alguma vez a um museu? Tudo abstrato. É só que há agora. Meu tio diz que antigamente era diferente. Muito tempo atrás, os quadros às vezes diziam alguma coisa ou até mostravam pessoas” (Ibidem, p. 52). E o avô de Granger – um personagem que aparece no final, e é um dos andarilhos da floresta – que marcou a vida do neto, “Faz muitos anos que meu avô morreu, mas se você levantasse a tampa de meu crânio, por Deus, você encontraria, nas circunvoluções de meu cérebro, as marcas profundas de seus polegares. Ele me tocou” (Ibidem, p. 222).
Com as personagens de Fahrenheit 451, Montag, Clarisse (e seu tio), Faber, Granger (e o avô), tem-se a certeza que mais que os livros, a palavra narrada é o melhor modo de perpetuar a memória coletiva, é ela que nos transmite as lembranças, como diz Benjamin, “A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração” (BENJAMIN, 1994, p. 211). O próprio diz também que, “o leitor de romance é solitário”. Entretanto no livro de Bradbury, o leitor não será um solitário, pois a sua missão é contar oralmente para quem quiser ouvir a história do mundo.
Nota Explicativa
1. A expressão não está no livro de Bradbury, mas sim no filme homônimo de François Truffaut, de 1966.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebein. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2009. (Coleção Globo de bolso)
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
TODOROV. Tzvetan. Los abusos de la memoria. Traducción de Miguel Salazar. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2000.