Um miniconto e três poemas de Júlia Batista
Júlia Batista (São Paulo, 1996) reside em São Paulo – SP, mas morou grande parte de sua vida em Embu das Artes – região metropolitana da capital paulista que continua sendo seu refúgio com ar puro e afeto familiar. Cursa graduação em Letras-Português/Italiano na Universidade de São Paulo (USP). Ainda criança, encantou-se pelas infinitas possibilidades de expressar-se, oferecidas pelo português brasileiro. Tal encantamento fez surgir em sua vida um constante movimento: viver-sentir-escrever. O resultado disso se dá despretensiosamente com uns versos aqui outros ali. Até pouco tempo, não achava que podia publicar nada. Atualmente, gostaria muito não só de ser lida, mas sobretudo de compartilhar escrevivências com outros e outras poetas. O primeiro passo aconteceu no início de 2020, quando ingressou na turma negra do grupo Livrar-se, coordenado pela escritora Lubi Prates.
***
Faz de conta que sou pipa
“[…]
A pé, trilha em brasa e barranco, que pena
Se até pra sonhar tem entrave
A felicidade do branco é plena
A felicidade do preto é quase”
Ismália, Emicida
O jovem pé descalço não teme o quente do asfalto quando se trata de manter a pipa no céu. Corpo, mente e coração abstraem os vaivéns dos carros, das famintas balas perdidas ou dos gritos de cuidado da tia. Cabeça erguida. Olhos fixos lá em cima. Total atenção aos humores e rumores de Iansã. Observando seus ventos, quer garantir que o seu faz-de-conta-que-sou-livre esteja na mesma direção dos movimentos daquela que cuida de seu Orí. Eparrey! No seu faz-de-conta, ele é Sujeito. Sendo assim, escolheu ser pipa. Sabe que linhas de cerol são proibidas, mas nunca viu algum dos seus voando sem contrariar alguma ordem estabelecida. Desobedece, não liga, nunca quis atrapalhar voos alheios. É apenas uma barreira para dificultar os cortes do real e ajudar a manter seu ousado papagaio mais tempo no céu. Quando os ventos estão preguiçosos, e não fazem dançar nem a mais leve e extrovertida poeira escondida nos cantos das vielas, de laje em laje ele pula e pulsa, pula e pulsa. Até achar aquela mais alta da rua – mesmo que não seja a sua. Pensa que estar assim no alto, sem sombra nenhuma e com o corpo todo iluminado pelo Sol é o mais perto da liberdade que ele pode chegar. É fato, prefere a adrenalina de estar no topo do morro. Mas não desanima quando tem que alçar vôo mais perto do chão, em meio aos carros e postes. A única diferença é ter que puxar a linha um pouco mais forte. Trabalhar mais o braço, intensificar o impulso. Por ele, ficaria dias e dias alisando o fino fio de sua linha. No silêncio, na folia, sozinho ou em companhia. O importante é não cessar o vôo da pipa. Porque voava demais, vire e mexe perdia algumas pipas. Quando acontecia, imediatamente pegava uns trocados perdidos na mochila e comprava outra pipa na primeira vendinha que via. Todos no bairro sabiam dessa sua fantasia e preocupavam-se com esse moço. Perguntavam entre si se isso ia continuar na chegada dos dezoito. Idade em que só aumentam as cordas no pescoço e começam as escassezes de ar, sonho e sono. Certo dia, no meio de uma pequena pausa nos voos, uma faminta bala perdida devorou em cheio sua linha-vida. O cerol não adiantou. Uma rabiola presa aos fios é tudo o que restou. Morto. Enquanto comprava pipa. Dois voos contidos. Duas vidas findas.
*
Indefinição dos cachos
cachos indefinidos se alinham
às milhões de incertezas que flutuam no ar
confinados, os banhos de sol se tornam mais frequentes
do que quando éramos livremente
presos a nossa rotina particular.
observo cotidianamente
os tons de azul desse céu diurno,
tento adivinhar a cor de sua despedida
nunca consigo, sempre sou surpreendida.
quando acho que o sol sairá de fininho,
ele dança de modo a nos dar uma paleta de cores.
quando espero um espetáculo colorido,
ele vai embora ligeiro sem vírgula e sem tempo
para que eu possa assisti-lo.
mesmo assim, dizer eu arrisco:
estamos nos tornando próximos.
talvez a intimidade venha
só depois de muito erro.
*
No tédio, gosto de trançar o cabelo
Despretensiosamente.
Brincando com os fios
fingindo capturar o tempo.
Desembaraçar lentamente meu cabelo emaranhado.
Como o despertar de uma manhã ensolarada desfaz um céu estrelado,
meus dedos mágicos desmancham os nós das fadas.
Separo os fios em vários trios,
tentando ser justa na espessura de cada mecha.
Quando a divisão termina,
escalo meus cachos rumo à raiz –
o segredo para a trança não soltar
é começar do âmago,
minha mãe sempre diz.
Pego trio atrás de trio,
gentilmente entrelaço suas mechas.
Brincando de acariciar algum tipo de caos,
fingindo domar uma fera.
Toda vez que eu não sei o que fazer,
gosto de trançar o cabelo.
Aproveito e podo os fios perdidos
que sozinhos não conseguiram cair.
Quando não sei o que fazer,
recorro primeiro aos
meus próprios fios.
Não dizem que tudo
começa é na cabeça?
*
23 minutos
Abro os meus olhos em pleno outono brasileiro
Nove da manhã e já perdi as contas
dos cantos dos galos no terreiro.
Nas margens da metrópole,
sinto seu grito mais forte
como se lá às manhãs fossem tecidas
com fios de ferro.
Antes de abrir a janela,
o sol já penetra por algumas frestas.
Debaixo das cobertas,
permaneço alguns segundos,
agradeço pelo meu acordar
e peço força aos orixás
para sobreviver neste mundo.
Lavo meu rosto nas sagradas águas da pia
e me assusto com estranhos zumbidos:
moscas ou bala perdida?
Ruídos de periferia.
No décimo sétimo minuto,
bebo um café preto e retinto.
Sem quaisquer sinais de brancura.
Engulo apressada e quente ele desce
queimando-me a língua e a garganta.
Será que dá tempo de passar manteiga no pão?
Enquanto abro a geladeira,
um grito e um susto: cadê João?
Morto.
E eu não tinha nem
sentado na mesa…
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