Um poema de Andréa Basílio Chagas sobre as dores e lutas das pessoas com dislexia
Andréa Basílio Chagas. “Doutoranda do ECCO-UFMT. Possuo mestrado em Estudos em Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT (2013); MBA em marketing pela Fundação Getúlio Vargas – FGV (2008); graduação em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2004). Sou membro do Grupo de Pesquisa Laboratório de Tecnologias, Ciências e Criação (LABTECC) e do Grupo de Pesquisas do Instituto Brasil-Israel (IBI), no qual desenvolvo pesquisa em tecnoestética neopentecostal contemporânea, trabalho que abrange: estudos em Comunicação, das dimensões estéticas das técnicas, comunicação e religião e marketing religioso. Hoje, estudo a tradução de artefatos da cultura/religião judaica pelo neopentecostalismo contemporâneo e seus atravessamentos na política brasileira. Também sou membro da Associação Mato-Grossense de Dislexia (Dislexia MT), onde ministro o curso “Tecnologias Que Auxiliam os Disléxicos” e trabalho com minhas companheiras de grupo, realizando palestras, organizando eventos e participando de mobilizações que objetivam informar sobre a dislexia e lutar pelos direitos da pessoa com dislexia. Ainda sou conselheira do Conselho de Políticas Afirmativas da UFMT. Portanto, sou uma professora, uma pesquisadora, uma ativista e orgulhosamente uma mulher com dislexia, além da feliz mãe de duas lindas crianças”.
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Sou uma pessoa com dislexia, e a dislexia é uma condição humana que traz consigo algumas peculiaridades. A mais relevante delas é a dificuldade com a linguagem escrita. No passado, a dislexia já foi descrita como cegueira para letras. Uma descrição que muito me agrada para descrever, por muitas vezes, a minha relação com a leitura e a escrita.
Não me entendam mal… Não que tenhamos alguma dificuldade em nos expressar ou em traduzir o mundo para as folhas de nossos cadernos e arquivos Word. Mas, de certa forma, não enxergamos letras, não como vocês normoléxicos (pessoas não disléxicas) enxergam. Portanto, tentamos “desenhar” os sons à maneira que ouvimos. Por exemplo, para uma criança disléxica uma “caza” escrita com z pode parecer uma casa muito mais próxima do real, do que uma casa escrita com s, ganhando seu zunido de z, de “caza”, a partir de regras ortográficas, de abraços vocálicos – para nós invisíveis ou difíceis de enxergar. Bom… Explicado o que é a dislexia, agora preciso explicar o que é ser uma pessoa disléxica em uma sociedade na qual a palavra escrita é tão importante, em que não é usada apenas para guardar informações, mas também é usada para medir pessoas, de testes escolares a textos de Facebook.
Uma criança com dislexia, por mais inteligente que seja – e não é incomum pessoas disléxicas terem a inteligência acima da média -, costuma demorar muito mais que as outras para ser alfabetizada. Na prática da escrita, podem trocar letras e/ou fazer uma escrita fonética, além das dificuldades para ler em voz alta. Estas diferenças, que persistem ao longo da vida, mais ou menos, dependendo da pessoa, são frequentemente alvos para o bullying e o estigma.
Portanto, acho que posso afirmar que a maior parte dos disléxicos, principalmente os jovens e adultos que não foram identificados na infância, que não contaram com ajuda de professores e/ou psicólogos, crescem marcados por dores, que podem durar uma vida inteira.
Eu sou uma dessas pessoas disléxicas, cresci sem entender o que eu era e por que eu era assim, fui vítima de bullying, maus-tratos e discriminações, até que me descobri disléxica, já adulta. E a partir daí pude me entender, me conhecer, me perdoar, me valorizar, encontrar métodos e dispositivos para viver neste mundo normoléxico. Finalmente, eu pude ser… eu.
Porém, assim como existe um grande grupo de pessoas que apoiam a inclusão da pessoa com dislexia, infelizmente, no Brasil, ainda há grupos de pessoas que negam a nossa existência. Um grupo de pessoas que, imbuídas das melhores intenções ou não, legam aos corpos disléxicos um lugar monstruoso, o lugar do invisível, do sem lugar.
A poesia que eu compartilho com vocês agora, começou a ser escrita em um dia de militância, um dia depois de uma reunião que tive com um grupo plural de pessoas, na qual havia aquelas que nos apoiavam e outras para as quais precisávamos explicar, não só o que era ser uma pessoa com dislexia sem identificação, mas também o que seria para nós a dor de termos a nossa existência negada.
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DISLEXIA: preconceito, vergonha e superação
Eu tenho a história da minha vida entalhada em minha alma;
Em carne viva,
Suculentos bifes empalados, rubros a pingar,
Profundas escaras que ignoram o tempo e teimam em doer.
Vivo afogamentos que insistem em se repetir de tempos em tempos,
A cada avanço, a cada passo dado.
Porém, enquanto minha alma clama pela segurança das sombras,
Eu sei que preciso expor as entranhas à sanha de vermes, abutres e homens;
Sei que a incompreensão, a inadequação e o escárnio
São um trago amargo a ser acolhido e não ignorado,
O beijo da guerra para que me mantenha desperta,
Para que eu não esqueça,
Para que não esmoreça,
Para que eu não me permita a paz do conformismo ou a tranquilidade subalterna,
Nem um passo atrás, nem um olhar para o chão,
Nem hoje, nem nunca mais.