Um poema de Carina Castro
Carina Castro – natural do ABC paulista, hoje vive no litoral sul de SP, é escritora, poeta, artista educadora, pesquisadora e mãe. Autora dos livros de poesia Caravana (Editora Patuá, 2013), Delicadeza bruta (Editora Penalux, 2020) e no momento trabalha em seu terceiro livro Goma.
Tem zines e outros tantos textos publicados em revistas digitais e antologias diversas, entre elas É agora como nunca (Cia das Letras, 2017). Escreveu e encenou a peça Linha Vermelha com o grupo teatral Mãe da Rua. É coautora de MUNDANA peça mista de poesia declamada, música instrumental e eletroacústica com Carlos Eduardo Samuel.
Experimenta e trança linguagens com outres artistas nos diversos campos das artes. É integrante da Coletiva Encantaria, projeto de arte-educação decolonial orientado pelo elo entre infância e ancestralidade afro-indígena. Facilita oficinas de criação literária para mulheres, jovens e crianças.
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NÃO ESCREVEREI SOBRE PAPEL PARDO
I
a mulher misturada demais não tem direito a identidade
a mulher exótica não tem direito a identidade
a mulher estrangeiramente estranha não tem direito a identidade
ela não tem cor
não tem origem
ela sequer existe
lhe incendeiam os cabelos
lhe alvejam as mira-
das
fazem um circo ao cerco de seu corpo
é o pecado desejado
mas não foram a ela destinadas as cartas de amor
a mulher não sabe qual foi seu crime
dizem que
ela não vem de lá
ela não é daqui
mas a mulher se sabe
nas histórias contadas
nas histórias não contadas
nas histórias vividas
na constelação de cacos de espelhos colados
onde enfim se vê inteira
onde vê a mulher semelhante que lhe sorriu na rua
II
deito a menina que fui em meu colo
e acaricio seus cabelos
deixo que encha sua cabeça
de sonhos
de futuro
de passado
de agora
sopro de seus olhos os ciscos
sopro os machucados
sopro pra que se avolumem como nuvens
os bons ventos e o bom olhado
que chegue abençoando
o banho de chuva das águas originárias
que iluminem os caminhos da mulher que sou hoje
a doçura de seu coração, o brilho de seus olhos
III
vejo minha avó no sorriso de minha filha
diastema
os olhos que viram um fiozinho, puxou os olhos que são os mesmos olhos
que meus olhos puxei os
olhos de minha
mãe
diastema
janela no tempo
resgato o fio onde nós refazemos os laços
não mais laçadas
alimento minha filha com as histórias ancestrais
ensino que se diz beiju
o gosto da goma
casa
de farinha
a dança do feitio
os encantados do milho e da mandioca
além lenda
cabocaria
aldeia
terreiro de brincar
longe
aqui
IV
anuncia-se a cor de quem nasceu esta manhã
silencia-se a cor de quem veio antes
um segredo revelado
em nossos fios, peles
y traços
V
costume antigo quase esquecido:
dar nome aos bois
contar histórias à luz do candeeiro