Um poema de Fernando Rios
Fernando Rios é jornalista, publicitário, antropólogo, poeta, artista plástico e consultor em comunicação corporativa integrada, da safra de 1943. Trabalhou na editora abril, jornal da tarde, gazeta mercantil, cetesb, embratur, ripasa s.a., cosipa (hoje usiminas), bahia sul/suzano. Livros de poemas publicados: noite dos homens, o caos (com josé renato de pimentel e medeiros); exercício sobre a cidade/exercicio sobre o corpo; a paz – como se faz? (de onde foi retirado o poema abaixo). Site: www.fernandorioscom.art.br
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Ave-bala
(de rapina)
perdida
PARA FILIPE,
TIGRE, GRAVE,
CONDOR
AZEREDO RIOS.
…
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele feito,
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
…
— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
— E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
VIDA E MORTE SEVERINA
I
uma ave-bala perdida
sem eira nem beira
procura um lugar
para morar
e quase sempre
ao encontrar
não faz de seu corpo-ninho
um altar
mas apenas
um casto e raso velório
primeiro repertório
para uma nova morada
ave-bala da cidade
não serve de sobremesa
apenas se apressa na procura
de um novo corpo-ninho
e quando encontra
promove duas moradias
uma para ela mesma
ave-bala em agonia
e uma nova casa
para um corpo sem serventia
II
aves-balas há muitas
soltas
ariscas
aos bandos
nenhuma pousa no fio
senão por um fio
resvala em cada corpo
onde às vezes
ela pousa
penando na escuridão
das aves-balas urbanas
não se fala em ninho
senão de metralhadora
dali elas partem
se multiplicam
se avançam colina abaixo
resvalam colina acima
essas aves-balas
tão diferentes daquelas
de família cabralina
porque estas aves-balas
que escapam das carabinas
criam uma nuvem de medo
cobrem o sol
levam pesares
levam azares
levam penares
e se aconchegam
em novos corpos ninhos
e neles
as aves-balas
ficam para sempre
mesmo quando retiradas
sobram ocos
no corpo adentro
preenchidos apenas
com as lágrimas
de um corpo-ninho
que não ressuscita
III
uma ave-bala
é sempre de rapina
ela vem na surdina
e quando chega
mais do que espanto
abrem-se gargantas
em fúria divina
sem chance
um ser já era
mano ou não
cidadão ou não
polícia ou não
traficante ou ladrão
de repente
____de cara no chão
IV
uma ave-bala
sempre deixa um nome
numa lápide
e duas datas
e lágrimas e flores
e sonhos esparramados
e cabelos arrancados
e um azedo odor
de ausências
uma ave-bala
constrói um vazio
num corpo cheio
uma ave-bala
sem qualquer doçura
sem qualquer pergunta
sem qualquer pedir favor
se aloja
e então
o que pode um corpo
senão adernar
e profundamente
sucumbir
V
uma ave-bala
(de rapina)
perdida
vem desembrulhada
loucamente alada
________pelada
e ao penetrar
termina
sem qualquer orgasmo
uma ave-bala
nasce e mata
na capital e no interior
________de qualquer corpo
uma ave-bala
nasce e mata
capital e trabalho
uma ave-bala
não escolhe tempo nem espaço
pode ser (a)manhã tarde noite ou hoje
chuva sol meio-dia orvalho
uma ave-bala
mais do que obra divina
faz parte da extensão
de um homem-bicho-homem
de seu ódio
de sua raiva
de seu errar
____ao céu
____ao léo
de seu estranho amar
de seu cavalgar estrelas
de seu dominar o mar
de seu atrever-se ao ar
VI
uma ave-bala ao léu
não escolhe continente
nem chapéu
para reverência própria
só apronta escarcéu
faz de qualquer corpo
ausente ou presente
coisa subjacente
coisa que bóia à toa pelo rio
uma ave-bala
____de rapina, ou não
faz do corpo quente
objeto frio
uma ave-bala solta ao vento
faz de cada sujeito
esquivo objeto abjeto
envolto em cantos, choros
murmúrios e ladainhas
mesmo depois de retirada
a ave-bala não traz de volta
a vida que voou
reina ela – a ave-bala –
na memória de quem ficou
no olhar estatelado de quem olhou
no gesto interrompido de quem calou
na voz engasgada de quem falou
no ouvido surdo de quem ouviu
o silvo sibilino
nem cobra nem felino
nem o risco no ar
só um tudo que antepara
um corpo diante da ave-bala
rapinamente
perdida
de repente
um nada
e ela – a ave-bala achada –
fica suavemente esquecida
na mesa de autópsia
para ser lembrada
na soturna funerária
VII
uma ave-bala perdida
depois de achada
sempre deixa seqüela
e ninguém se livra
da memória dela
uma ave-bala perdida
jamais cai no esgoto
sai sempre de um
homem ira
homem raiva
homem tralha
homem ódio
homem cinza
homem escroto
tanto mais cresce o ódio
mais a ave-bala perdida
se transforma em rapina
e mais ela entra
às trombetas
ou em surdina
VIII
a ave-bala perdida
de rapina
não escolhe tempo bom ou ruim
quando ela se apresenta
pressente-se
alguém está perto do fim
e é sempre um presente
que se perpetua
seja criança jovem
velho adulto
basta ser gente
mulher e homem
e a ave-bala de rapina
perdida
não se faz de rogada
e se faz anti-semente
IX
mas as aves-balas perdidas
de rapina
têm especial preferência
(juvenil predileção)
por meninos avião
esses que levam
e polvilham coisas
para prazeres maiores
chamadas drogas
de alucinação
e deixam as pessoas
dentro de si de dentro
do lado de fora
do dentro do nada
e essas crianças jovens
encontram as aves-balas
achadas em qualquer escuridão
e caminham com ela nos seus bolsos
quando deveriam chupá-las
ao invés de entorná-las
em qualquer corpo são
e de repente
essas aves-balas
de rapina
se voltam contra eles
aves-balas perdidas
de rapina
bumeranguemente
atrevidas
X
e no acaso da bala
acha-se um ocaso
finda-se uma doce vida
que poderia ter sido
calma ou intrépida
e as aves-balas
de rapina
perdidas
________ao léo
cumprem cada vez
seu melhor papel
de povoar de
anjos arcanjos
querubins e serafins
o céu