Um poema de Lucas van Hombeeck
Lucas van Hombeeck (1991) é poeta e mestrando em Sociologia na UFRJ, onde pesquisa a relação entre poesia e interpretações do Brasil. Construiu a muitas mãos a Oficina Experimental de Poesia (2011-2018), com quem publicou o Almanaque Rebolado (Azougue/Garupa/Cozinha Experimental, 2017). É autor de Pará ocidental (7letras, 2019) e da plaquete Nuvens [na seção de congelados] (7letras, megamíni, 2018). Mora no Rio.
O poema abaixo foi tirado da última seção do Pará ocidental, “Tereza”.
***
1.3 Teresa
são quase duas
horas de trem até
a casa onde repousa
Theresinha de Jesus Gonçalves Ledo
oitenta e oito anos depois
das fraldas de
pano
prelo
do plástico
e fita adesiva
de si
dos
irmãos
sobrinhos
sobrinhos-netos e de
si
subúrbio
de uma bibliotecária
aposentada
amante de roberto carlos
ar-condicionado
e pretzels de canela
original do Pará
Gentil Bittencourt 160,
desBelém
levantando cedo a
três batidas
semileito lençóis
brancos fibra fraca
a casa esfarelada
onde hoje
levantam
os edifícios
montanhas
sobre
montanhas
trilhos
do ramal
saracuruna
sobre o mercado
cansado de caboclos
e putas comendo
açaí com camarão seco
viga
viscosa e roxa
construída
no povo
trocas de cascas
rolos sabonetes
phebo
atabaques couro
seco círio
aceso
máquina de cheiro
pau-rosa cravo
linho e
o trabalho
das mulheres sobretudo
as lavadeiras sobretudo as
que vestiam o contador
pai de Therezinha
e dos outros doze a quem
mandou chamar
dizendo
hoje morro,
categoricamente
como
uma revista em paris
ou uma castanha
na balança
vero
peso
gasoso entre cal e alvenaria
quintal e folhas a
carvão
geométrico
mas não sem antes
deixar
em ordem as contas
da casa
da firma
e da vida
de seus treze filhos
(minha avó
tias-avós
e tia-avó Thereza
bestializadas com a organização
do cálculo)
do filigrana da rede
trançada a mão e tingida
a ferro e urucum
seu cheiro
embalando o corpo
às seis da tarde
Terezinha de Jesus
deu uma que-
hora da vida em que se parte
quiseram o sul
língua onde se diga
tu é
e ainda são
daqui
da casa onde
descansa
a mais velha
são quase duas
horas de trem até o repouso
e se ouve é deus
quem me dá força
pra continuar a luta
e todos os dias
acordar
tomar banho
assistir
com saudades da terra
e do cupuaçu
coisa que não muda
apesar dos dentes
serem outros
como as
horas
perdidas em prestação
es-
correndo como
o carnê das casas
pernambucanas
e o cheiro de
amaciante
de que não se lembra
mais
Quanta laranja madura
Quanto limão pelo chão
Quanto sangue derramado
Dentro do meu coração
se seu nome é
teresa
se eu sou mau
compositor
é que passamos as
tardes nos olhan-
do como quem busca
entre as peles e
dobras
o tempo
de sentir que já
não falta amor ou carne
assada
como pedem
os amigos
compartilhando piches
no whatsapp
ou os moradores
da praça nossa
senhora da paz
sobre skates e caligem.
Da laranja quero um gomo
Do limão quero um pedaço
Da morena mais bonita
Quero um beijo e um abraço
dizem que os narizes
dos velhos não deixam
de crescer. acho que é
verdade.
no teu caso porque
falas assim
intimamente o
tu
ésses nos finais
como quem soma
às palavras palavras
ou porque
te tiraram da vida o homem
depois o filho
o sorriso
amarelado pelas placas
e cáries
de platina
e a sucessão de tempos
prensados entre os
livros pros quais
trabalhaste
escapam
teu nome
de que sabem
tão pouco
ganhando uma misé-
ria nos balcões da
biblioteca nacional
se perguntassem
– Tia té
Qual foi o maior aperto
que tu passaste no pará
saberiam
isto é um erro
isto é uma carta
de intenções
à filha do doutor
morto numa rede
de avarandado
dia 12 às seis da tarde.
dizendo que venha
desde o Irajá até às
baixas de 1922
e venha comigo
abandonando as
cadeiras de alumínio
que te ferem as coxas
já geladas e des-
coladas das fraldas
com que já
me vestiste
e hoje te vestem.
atravessando
a vida por que a sucessão
de tempos não
te deu sequer
salário
uma aposentadoria
magra
como teus lábios
pintados em dia de
festa com glitter
e a correntinha
de ouro com
pingente
de estrela
é o pará
meu filho
dizias entre
as dentadas de
manga com farinha
que ainda podias comer
com discernimento
e terebintina
e me comovia
achar que em algum
momento tinhas
sido feliz talvez
pulando de um
píer na ilha de Marajó
enquanto o sol caía ou
comendo um ham’n’egg
no bob’s de Copacabana
sonhando as
praças
de alimentação
dos shoppings
num dia de verão
perfeitamente fora
do rigor paraense
ou do calor carioca
numa tarde de
dezembro
o cruel
dos meses
porque nele
nos
endividamos
pelo meu aniversário
na rua da alfândega
com lâmpadas chinesas
e papais de plástico
o meu, morto
o teu, sumido
estrelas mudam de lugar
e cuidei de ti
com o que queria
que me cuidasses primeiro
pelas coisas esquecidas
pelo cheiro de madeira
do assoalho da casa
da minha irmã
que é a única
que ainda
visita
e me dá gosto
não saber mais
quem morreu apesar
de nada ser tão
doce como a tarde
que acaba
ainda clara
ou a casa
frequentada
onde se dorme
sob a laje
e as muitas
noites
que enfim
acabam levando
coisas de que
esquecemos
como as toalhas
ainda molhadas
do mar da praia
ou o rio negro
onde tu tens
que ir um dia
são teus bens
de raiz como
o muro do colégio
de lourdes
em que encostá-
vamos ou o
quadro onde
escrevíamos a
giz os nomes co-
mo quem risca
em branco a noite
como teu nome
me diz teu nome