Um poema de Marina Moura
Marina Moura: Gosto de percorrer o olhar pelos cenários da vida e descrever poeticamente aquilo que brilhar mais alto. Sou poeta em tempo integral, redatora e escritora de livros ghostwriter e também autorais – Poesia Gay Brasileira e Eternidade – A construção social do banimento do amianto no Brasil. Produzo e conduzo meus trabalhos pela Amarelo-grão, minha editora, focada na elaboração de materiais para meios impressos e digitais.
Poema inédito, escrito em 2021.
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Ritornelo
Nasceu hoje algo trágico na minha cara
Algo como um ritornelo de Schubert
E não pude deixar de evitar certa ânsia
Dirigida às pessoas que ousam experimentar suas vidas de forma mesquinha
Aquelas que fazem dos dias um nauseante vaivém de 35ºC, morno como o abandono de algo do qual amor já saltou fora
Receptáculo desiludido implorando por qualquer forma de afeto ou compensação
Ritornelo desiludido
Com repetições desnecessárias
de trechos inteiros das horas mortas
Sem se importar se as passagens e paisagens percorridas
Tenham sido dilacerantes ou tediosas
II
Aprendi a contrabandear a sede do grito
Armando um jeito bonito de estourar os tímpanos com arte
Serenade
Op.100, D.929
Também com Paganini ou Vivaldi
Alcançando a possibilidade fugidia
De ser eu mesma em figura, forma, carne vívida
Toda escala da força
Toda força e cor, ação!
Com a fibra das escamas da minha pele
Fiz longo arco e levantei minha estrutura óssea, embarcação de alma em temporária carne
Para tocar um violino flamejante criado em igual dimensão
Ambos reproduzidos das mesmas matérias embaçadicas ou perenes:
Da presença da respiração ofegante e amorosa da mãe, com seu olhar de pena por aquela constituição
E de generosos nacos de madeira sublimada
Luthier com mãos rasgadas
ensaiei um movimento desafinadíssimo
Para expor com alívio
A tristeza de ver potências oprimidas
Que desperdício!
Um grande violino, pesaroso,
Para aqueles que se contentam
Em levar uma vida de artifício
Sem gosto, rosto, sem riso nem choro
Uma nota esgarçada para vocês todos
Que fodem sem amor
Uma escala ínfima
Da última nota musical mal executada
Pelo ensaísta frustrado que deixou a emoção vazar das mãos direto ao chão,
Sem passar pelo olhar das crianças e tocar as cordas do instrumento de destino
Orquestra! Padre, comandante, meu pai, minha mãe, Deus, rabino
Pelas covinhas róseas das musas renascentistas
Pelos poetas que mantêm minha alma viva e pelo sacrifício de todos artistas, brado:
Eu quero a minha existência
Como anunciação de uma grande festa
Com acordes
E músicos circulando pelos salões
A alegria nunca mais subjacente
Mas agora, sim, harmonizada
Com a eletricidade que escorrega
Das notas instrumentais
Para as mais finas camadas da pele
Ativando o que nem mil dimensões
São capazes de tocar: a música da vida
Riso à Fibonacci
Schuberts insanos de tesão
Liberdade!
III
Gran finale
Descobri na escala dos 30
Que o sinônimo perfeito da vida
É uma nota musical desenterrando as mais sublimes formas de arrepiar a pele
Que a música nunca pare
Que a arte impere
Como sobrevivência, como destino,
como a musa que arranca um coração sem feri-lo
Mantendo sempre ativas as pulsações mais autênticas
Apenas para alcançar a mais bela peça ou fotografia de uma época
Entre o alegro e o vero
Um verso inteiro contra o ritornelo
Ma che bello!
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(Fotografia: Hatano [detalhe em p&b a partir do original colorido])