Um poema e um microconto de Telma Ventura
Telma Ventura é poetisa, contista e ensaísta. Professora na área de Letras há 26 anos, Mestra em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, pesquisa as interfaces entre Literatura e Psicanálise, bem como as Literaturas de autoria feminina de Língua Portuguesa. Psicanalista, idealizou e coordena o Projeto de mediação de leitura “Um Conto por Encontro – Leituras literárias de autoria feminina”, bem como o Projeto Literário “Mulher & Literatura em Cena”, cujos vídeos no canal homônimo no Youtube abordam as literaturas de autoria feminina, tendo como enfoque de análise a Crítica Literária Feminista, os Novos Feminismos e a Psicanálise Feminista. Curadora do Projeto Cultural “Voz de Mulher”, o qual visa o empoderamento feminino por meio da Arte, da Psicologia e da Educação. Autora de Desconstruindo o silenciamento feminino: Inês Pedrosa e a narrativa performática de Fazes-me falta (Editora Todas as Musas, 2018).
***
o silêncio
em que te escondes
me prende
(respiração)
e deixa no corpo
este calor
– não te apegues,
por favor
nas madrugadas
desperto
(desejo)
os teus dedos
tua pele
suave perfumada
com que me visto
e desvisto sem pudor
– não te apegues,
por favor
a tua boca
luxúria
sem descência
ou clemência
(a minha espada)
a tua língua
teia que enreda
e vicia
insano furor
– não te apegues,
por favor
tomo-te de força
sem tempo
sem trégua
(sem disfarce)
no enlace das pernas
brusco invasor
– não te apegues,
por favor
elevo-te aos ombros
desfaço-te
despertas do sono
donde te aguardo
e pouco a pouco
(dentro de ti)
voraz
o incêndio
do teu corpo
acalma meu pavor
– não te apegues,
por favor
mas sem cansaço
no teu corpo me desfaço
teu prazer entreaberto
(o ritmo)
teu delírio
minha avidez
gozo subversor
– não te apegues,
por favor
então
nos teus braços
(o meu espaço)
no cetim
o descenso
o descanso
mas a cantiga
(essa ladainha)
na rudeza da tua voz
se faz atroz clareza:
– não te apegues,
por favor
com certeza
é só sexo
*
Outro dia, eu já estava maquiada, cabelo arrumado, pronta pra sair, tocam a campainha. Duas testemunhas de jeová. Fiquei na dúvida se iria realmente atender, mas as duas já haviam me visto. Então, tá – lá vou eu. Vestida de vermelho e tudo, eu estava pronta pra dizer um “não” bem redondo. Mas a mais moça – de uns 22 anos, enquanto que a outra deveria ter a minha idade – me causou uma sensação diferente. Me olhava de um jeito diferente, com olhos curiosos, quase gulosos. Não tirava os olhos do meu corpo, do meu cabelo, do meu rosto. Mas eu cansei de ouvir o blábláblá e cortei, “olha, eu entendo a opção de vida de vocês, mas a minha é outra. Eu adoro as coisas do mundo, sou atéia, de esquerda, feminista. Sou quase a mulher do capeta. Portanto, não tem como. Bom dia”. E entrei. Mas antes, olhei a menina, agora branca de susto e boquiaberta pelo que me ouviu dizer. Pensei que, assim, eu me livraria delas. Que nada… no dia seguinte, lá estavam as duas no meu portão novamente. Desci já pronta pra dar um esculhambo nelas, mas não pude… mal me aproximei, elas logo estenderam um bloquinho de papel e uma caneta na minha direção, e dispararam, “por favor! por favor! você pode dar o número do seu cabeleireiro e a marca da sua maquiagem, em nome de Jeová!!!!!”.