Um texto de Arthur Santos da Silva
Arthur Santos da Silva. Graduado em história, exerce o ofício de jornalista. “1996” é um fragmento do texto Sangue do meu pai. Material ainda inconcluso.
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Sangue do meu pai
1996
I
O primeiro puxão não adiantou. Só serviu para descolar o queixo pregado no travesseiro. Limpou os cristais de baba com a mão, ainda sem abrir os olhos e se contorceu. Deu nova direção ao corpo. Virou para se desviar dos raios de luz que começavam a escorrer em formato de onda. Vazavam pelas telhas Brasilit. A carcaça de tão magra se confundia com um saco de ossos. Parecia amarrado na cintura por um nó cego feito com a cueca. O quarto não tinha janelas, quadrado pequeno, tijolo à mostra, sem grandes cortinas. Ali ninguém sabia o que era persiana, só existia objeto útil.
O segundo puxão, quase raivoso, teve mais eficiência. Serviu para que abrisse minimamente os olhos. Percebendo a dificuldade, aparou com as costas da mão parte da remela que selava as pálpebras. A massa amarela, secreção gordurosa, se ajuntou com pedaços dos cílios. Não sentiu dor. Naquele quarto, praticamente uma cela superlotada, não era possível chamar com a boca. Outros três dormindo poderiam acordar. Deitados no segundo beliche estavam os mais velhos. Os dois barbados, novos funcionários do comércio, entravam às nove horas. Mão de obra barata precisa dormir bem. Deitar cedo era o lema inconsciente da família.
No terceiro puxão, pôs-se sobre os pés, vestindo o uniforme. Sabia que não teria a quarta chance. Sentia por experiência. A infância sempre determina a pessoa. É a carga nas costas do sujeito como parte de uma teoria euclidiana. Se afortunado, cresce feliz, qualidade dos parasitas. Quando condenado à vida se faz homem quase sem ter sido criança.
Bom exemplo da mutação forçada, o jovem Antonio quando pequeno apanhava muito. Na escola, surra da professora. Espécie de açoite psicológico distribuído principalmente pela boca. Em casa, as cintadas partiam do pai. Tira de couro de boi firmada com força em uma volta e meia na mão direita. Data marcante, no dia 22 de setembro as coisas pioraram e a violência pareceu ter saído de todos os lados. Dia verdadeiramente crítico. Igual uma árvore podada em seus primeiros anos.
Ao chegar durante a manhã no colégio Francisco Mendes, Antonio foi encurralado pela professora, senhora carnuda de pelo ruivo. Diabética e hipertensa, a mentora comprovava que três décadas em sala de aula era tempo suficiente para perder a razão. Consequência do contexto, a pele rosada parecia sempre prestes a se romper. Pequenos vasos sanguíneos pressionados contra as bochechas geravam espanto. Medo que o rosto velho rachasse.
Fruto da impaciência senil, contato entre as partes ocorreu como se houvesse atraso. Sino da entrada, porém, não havia batido. A rispidez contra a figura retrancada, magra e recém-chegada ao Centro-Oeste existiu por ato de memória afetiva. Espasmo corporal sem amor algum. Agitação por puro preconceito. Em contrapartida, o pequeno nordestino nascido em Caruaru, Pernambuco, ainda se acostumava com o ambiente cerrado da nova cidade.
“Escuta aqui seu peste, você mal começou e já chega atrasado, sem uniforme, querendo atrapalhar todo mundo que quer aprender alguma coisa. Eu não sei como é que funcionava lá, no Norte, mas veja bem, aqui é muito diferente. É preciso se adequar” – esbravejou a professora ao se levantar usando como apoio uma fina bengala marrom. Madeira Indaiá com o cabo de alumínio. Observava o aluno caminhando entre mesas e cadeiras, buscando assento. O excesso de açúcar, consumido principalmente na forma de refrigerante de cola, havia feito brotar uma ferida no grosso tornozelo esquerdo. “Você se endireita ou vai ser mandado embora, expulso. Aí eu quero ver com essa cara abolada de paraibinha arrumar vaga em outro lugar”.
Antonio, mesmo esguio e com treze anos ainda recém-cumpridos, era composto de personalidade forte. Última cria de nove irmãos divididos em cinco homens e quatro mulheres. O espírito duro veio do pai, homem velho e calvo de corpo milimetricamente arrojado, beirando algo próximo de um metro e sessenta. A criança, carregada pelos mais velhos dentro de um Passat ano 1984, havia migrado cerca de três mil quilômetros. Do Planalto da Borborema ao Pantanal. O deslocamento do corpo pareceu reproduzir mal-estar permanente. Não conseguia romper a sensação de ser breve. Era como se houvesse mecanismo de defesa capaz de proteger quem desconhece a superfície que pisa.
“Olhe bem professora, eu não sei o que está acontecendo e também não quero saber, ainda não são sete horas. Cheguei agora por causa do ônibus, lá perto de casa é só um, demora até passar. Tem muita gente na sala, mas muita gente ainda não chegou, é só olhar. Não vejo motivo para briga” – replicou o menino apresentando a voz ainda aguda aos poucos colegas presentes. Prosseguiu contestando segundos antes de se sentar. “A senhora tem é muita implicância comigo, já está claro que sem motivo. É simples, me respeite que eu também lhe respeito” – deixou o corpo cair sobre a cadeira como se fincasse uma estaca de ferro no piso de concreto queimado da sala.
Surpreendida pelo contra-ataque, Cíntia evitou conversar. Experiente em ministrar aulas de História, logo tratou de reprimir. Três toques com a ponta emborrachada do bastão na panturrilha da criança serviram como sinal para que se erguesse. A inflamação não precisou progredir, fez-se o silêncio. Levou o desafeto à diretoria igual se toca um bezerro ao curral e definiu como castigo suspensão de um dia por desacato. Poucos colegas presentes observaram a retirada punitiva. Os olhos enfileirados na janela articulada. O pior foi a necessidade do pai durante o intervalo para uma conversa séria, reunião para comunicar as regras da escola. A criança acabou encaminhada para casa logo após telefonema de aviso. Precavidos, pai e filho se evitaram no caminho.
Antonio, ciente da agressividade que sempre transbordava do homem que o criou, escolheu voltar andado. Ao deixar a escola preferiu seguir inventando a própria rota entre as ruas que cruzavam dois bairros até a casa. Arranjou tempo para observar meninos mais velhos na quadra esportiva que marcava o meio do caminho. Todos conhecidos de vista, nenhum deles amigo. Sentado no banco do passeio público, se imaginou maior, se fazendo como pessoa capaz de declarar a própria independência para não incomodar ninguém.
Manoel, transpirando um pouco mais do que o normal, usou o transporte coletivo que passava de meia em meia hora. O velho nunca teve carro. Por vontade, não sabia dirigir. Durante a viagem, sentado no banco ao lado do cobrador, tentou por diversas vezes puxar conversas sobre como endireitar crianças vadias. Quis saber se a solução era endurecer os castigos físicos ou fazer cessar o pouco divertimento que o filho tinha durante as tardes. Sem avançar na tentativa de diálogo, desceu do ônibus exatamente no local desejado. Procurando os degraus para sair do coletivo, arranjou tempo e rancor para resmungar sobre a falta de simpatia do trabalhador. Problema de toda humanidade. Antipatia típica dos comunistas, pensava.
Em plano oposto e adiantando os passos, ao chegar em casa Antonio se manteve calado. Depois de enfrentar a postura incorreta de quem deveria lhe ensinar algo, julgou que acabaria ainda mais alvo de impulsos como os da professora. Ciente, preparou o corpo para o pior. Aparelhou a carcaça com raiva extrema em caminhadas curtas entre sala e cozinha, quarto e banheiro, silenciando igual quem pensa muito. Antecipando sofrimento, talvez antecipando choro, recebeu carinhos da mãe. O jovem, ainda que tocado pela matriarca, sabia que o encontro com o inimigo demoraria apenas algumas horas. Aguardava o ataque para o horário do almoço. O mais tardar para o começo da noite.
II
Havia percebido. Ainda não sabia com exatidão, mas quando o telefone tocou, foi ela quem atendeu. Torceu por uma oferta de emprego. Sem perguntar quem era, a voz pediu para chamar o marido, o “Senhor Manoel”. Na ficha constava o macho como responsável. Foi ele quem levou no dia da matrícula, três semanas antes, logo que chegaram. Levou porque não tinha escolha. A mulher ainda ajeitava a casa, lavando as peças de roupa. Trabalhava para retirar a sujeira da estrada.
Entendeu a gravidade quando o telefone foi lançado ao chão. Ouviu dizer apenas o xingamento, “esse desgraçado”, mas não quis perguntar. Só um dos filhos dava trabalho, supôs outra briga na rua ou a novidade de um pequeno furto. Guardou as previsões. Poderia ser ela no lugar do telefone, o próximo objeto jogado. Preferiu se recolher, caminhando em direção ao armário da cozinha. Ouviu o som dos pés na busca pela carteira, a contagem dos trocados, as chaves entrando no bolso. Pela janela, olhou novamente quando o homem saiu, ultrapassando a linha do portão. Observava enquanto sentia o peito apertar.
Maria do Socorro, mulher magra, aproximadamente um metro e sessenta, era como um respiro. Flor persistente sobrevivendo cercada de violência. Sua pele de aparência fina exalava o cheiro de água sanitária mesclada com sabão de coco. Exatos oito anos mais nova que o companheiro que escolhera, as mãos de Maria permaneciam quase sempre molhadas. A fragrância sintética, encorpada principalmente pela agressividade da soda cáustica e do cloro, era sentida nos beijos diários aplicados na lateral da cabeça. Carinho marcado para durante o almoço, logo ao servir feijão no prato fundo do menino mais novo.
“Olhe meu filho, eu sei que você não fez nada. Já me disse. Mas você sabe muito bem como o pai é. Seu pai lhe quer bem, lhe ama muito, mas acha que do jeito dele pode resolver alguma coisa. Se prepare, tome um banho e vá para o quarto, tente dormir. Quem sabe se ele te encontrar dormindo, até pode deixar passar” – comentou a matriarca, mordendo os lábios por preocupação. Pressentia as agressões como se atingissem seu corpo. Buscando proteção, vestiu roupas compridas, embutindo entre o colo e o tecido grosso um terço com a imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Manoel, o pai, se portava como fumante compulsivo acostumado a sentar rotineiramente na mesma cadeira de balanço. Na área externa, usava um jornal ao lado, estendido sobre o chão. Noticiário servia para aparar cuspes escurecidos do aposentado, Rejeitos grossos, nutridos quase sempre da mistura entre tabaco e café. Com a camisa de botões aberta até o umbigo, o velho Pajeú passava os dias em casa produzindo artesanalmente cigarros de fumo e palha de milho. Torto e displicente, cuspia enquanto apreciava o pigarro crônico.
Rotina só mudou no dia 22 de setembro de 1996. Ao saber sobre o comportamento do filho mais novo na escola, resolveu que deveria se reapresentar quando o sol se recolhesse. O objetivo não foi esvaziar a cabeça ao longo das horas, pondo fim à raiva sentida igual eletricidade quando atinge o corpo. Desejo era amontoar ruindade e pessoas. Amontoar gente porque seis dos seus outros filhos, homens e mulheres, todos maiores de idade, voltavam dos respectivos trabalhos ao final dos dias. Voltariam todos para a mesma casa. Conforme planejado, voltariam todos para apreciar uma lição de educação pela violência.
Ao chegar, supondo sobre a presença da plateia, Manoel utilizou como instrumento potencializador de pânico a espessura do próprio corpo. Carcaça pequena e gasta, mas suficiente. Era evidente a vontade de impressionar. Abriu o portão puxando a trava como se fosse o cão de um revólver, empurrando a placa retangular de metal sobre o trilho rente ao chão, tudo com muito ímpeto. O mesmo som áspero e ruidoso de todos os dias foi reproduzido. Diferente das outras ocasiões, o chefe da casa escolheu por usar força de forma que a estrutura ganhasse embalo violento, se chocando contra o concreto direito do muro. Portão aberto totalmente quando de um estouro bruto. “Cadê aquele moleque filho de uma puta? Eu sei que ele está me esperando. Se estiver escondido, vai apanhar mais” – provocou o pai, invocando o espírito de uma besta-fera.
Antonio, deitado no quarto que dividia com irmãos, recolheu a raiva pela goela como se fosse saliva. A fúria logo se converte em medo. Começou a chorar. O corpo já sentia como se um vento quente passasse raspando. Ouviu os latidos dos cachorros no quintal e lembrou momentaneamente, ainda durante o choro, que havia esquecido de catar as fezes dos animais. Apanhar a merda era um dos seus trabalhos domésticos diários. Quando percebeu a porta do cômodo onde estava se abrir, sentiu frio e o cheiro do couro malcozido que compunha uma das peças de roupa do pai. Odor se firmou em uma forte pancada que atingiu verticalmente nariz e boca, criando um vinco no meio do rosto. A fivela do acessório, pontiaguda nas extremidades, ocasionou uma pequena fissura na cartilagem nasal.
Golpes de cinto repetidos nas costas, braços e pernas. Aproximadamente vinte movimentos, todos eles acompanhados quase que imediatamente por gritos. No terceiro protesto, se ouviu também o lamento da mãe posicionada em desespero com a perna direita no quarto e a esquerda na sala. A porta na cova dos seios. Cabeça em movimentação desesperada. “Solta o menino. Ele não fez nada” – gritou Maria, chorando.
A mãe, verdadeira dona do lar, costumava cumprir uma segunda jornada na condição de apaziguadora. Gemia mesmo longe de sentir prazer. A mão, passando pelo pequeno decote, envolvia a imagem santa. “Ó incomparável Senhora da Conceição Aparecida. Mãe de Deus, Rainha dos Anjos, Advogada dos pecadores, refúgio e consolação dos aflitos e atribulados, Virgem Santíssima cheia de poder e de bondade, lançai sobre nós um olhar favorável, para que sejamos socorridos por vós”.
Manoel, naturalmente empenhado no ato de ferocidade, se manteve em puro silencio. Apenas bufando ódio. Os músculos pequenos e recortados seguiam em pleno empenho, recheados de sangue. Mesmo sem o cigarro aceso, continuou cuspindo, agora no chão do quarto. Escarrava com nojo. No primeiro golpe, fez como se mirasse o bojo da cabeça. Igual quando matava boi. Pancada seca.
Enquanto definhava, Antonio mais produziu tensão do que sons. O rosto marcado pareceu comportar uma aquarela composta por sangue e lágrimas. O líquido vermelho coagulava na superfície áspera da cama. Endurecia sobre o lençol velho. Sem força e com a língua de fora, por um instante pensou que uma faca passaria pelo seu pescoço, rasgando veias e artérias. Ensinamento sertanejo: o sangue precisa escorrer antes que a carne comece a amargar.
“Solta o menino, já está bom, não precisa bater mais. Deixa ele sair daí, é seu filho, Manoel. Não precisa de nada mais, ele já aprendeu” – gritou a mãe. Tomou coragem, entrou no quarto e postou a mão sobre o ombro do companheiro. Não precisou impor força no ato para determinar retirada, bastou o movimento como uma autorização.
III
O corpo jovem parecia morbidamente flexível. Braços produziam formatos de semicírculos, um em direção ao norte, outro em direção ao sul. A face esquerda tremia em contato com os lençóis da cama. O tronco ferido, levemente contorcido pelas agressões, rente ao colchão. Desesperada, Maria logo se avexou em levar Antonio ao banheiro. O trajeto, percorrido com alguns tropeços, foi cumprido sem nenhuma ajuda. Banho no chuveiro durou cerca de cinco minutos, tempo ainda ondulado por soluços de ambas as partes. O corpo ofendido permaneceu encostado nos gelados azulejos brancos.
Seis irmãos presentes flagraram tudo da sala, alguns sentados no sofá, outros encostados no portal de entrada. Tensionados ao observar que o pai os olhava, reproduziram gestos entre cabeça e pescoço. Movimentos querendo dizer “você está certo, pai”. Ou então “ele não presta, todo mundo sabe”. Alguns dos homens, indo além do contato visual, encararam como necessário um abraço de afago. Gesto seguido por afirmações.
“Vocês nunca me deram um desgosto desses, nunca. Parece que é ele que pede esse tipo de coisa. Todo mundo sempre ajudou, desde pequeno. Ajudava com as vacas. Ajudava cortando capim. Desde lá. Todo mundo dividindo o pouco que tinha em casa. Sempre respeitando quem era de fora. Agora aqui vem esse alma sebosa fazer coisa errada. Comigo não vai se criar. Eu não vou morrer de desgosto por causa de um inútil como o irmão de vocês” – vociferou Manoel, forçando os dentes para não chorar.
Duas crianças, sobrinhos de Antonio, seis e sete anos, viviam no mesmo ambiente. Paulo e Ronaldo eram filhos do segundo homem mais velho da união entre Maria e Manoel. Durante o fim daquele dia, tiveram a coragem de abrir a porta do quarto. Após o banho, Antonio surgiu aos olhos dos meninos. Enfraquecido sobre os joelhos e chorando enquanto tentava acalmar a pele, o pequeno flagelado olhava para um ponto fixo da parede branca do cômodo. Maria, com um pente fino e vermelho, endireitava o cabelo negro do filho para trás em movimentos contínuos de completo silêncio.
Sujeito arcaico, Manoel possuía a violência como forma de amor. Bem querer traduzido pela presença física mais viril. Até antes de seu filho caçula completar 10 anos, costumava andar com um revólver calibre 38 na cintura. Modo era de quando vivia no Sertão nordestino. Tentava acreditar que o objeto servia como instrumento de segurança.
Deixou de querer a arma no momento em que a esqueceu sobre a cama. No dia foi como se tivesse esquecido uma peça de roupa. Ao perceber, querendo ter de volta o complemento do próprio falo, flagrou o filho último brincando de matar ratos imaginários que corriam no teto do quarto. Um olho fechado enquanto o outro buscava pela mira perfeita. Depois do tapa lateral, recolheu o brinquedo e deu a ele um fim que ninguém nunca soube qual foi.
Mais importante do que um revólver, o azar de Antonio aparentemente era ser o mais amado pelos pais. Talvez também o mais novo e frágil da família, alvo maior. Destacava-se ainda pelas diferenças físicas. A pela era um pouco mais branca do que a dos irmãos. Recebia apelidos variados por conta dos traços contidos. Para rechaçar comentários irônicos, costumava dizer que havia passado muito tempo sem se expor ao sol.
O nascimento, sem nenhuma espécie de programação, conferiu diferença de idade de doze anos em relação ao antecessor. Em comparação ao mais velho, quase trinta. As características de Antonio faziam com que parentes distantes, tios e tias ainda em Pernambuco, imaginassem o jovem como fruto de adoção. Nomes maldosos chegavam a pensar no menino como produto de uma traição. Era a praga no afeto entre Manoel, Maria e o filho. Tipologia de amor sempre desviada em direção ao ódio. Sentimentos nunca em lados opostos.
“Você sabe como o seu pai é, pensa sempre como o dono da razão. Não adianta você emburrar, só faz piorar as coisas. Vá falar com ele, mesmo que rápido. Vá e peça a benção para poder dormir. Ande logo e volte logo, agora ele já está mais calmo” – orientou Maria. Tentava abrandar as coisas, só assim conseguiria dormir.
A liturgia diária não figurava como exclusividade de Antonio. Todos os outros irmãos se apresentavam sempre com um beijo na mão do pai. O mesmo para despedidas. Depois, oferecendo a testa. A diferença era que Manoel, ao cumprimentar os mais velhos, apresentava o próprio corpo levemente amolecido para um beijo na fronte. Permitia-se à condição de troca.
“Benção pai”.
“Deus te dê vergonha, seu merda”.
O menino correu pela sala.
“Benção mãe”.
“Deus te faça feliz, meu filho”.