Um texto de Flávia Péret
Flávia Péret é escritora e professora de escrita e literatura. Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG, atualmente realiza doutorado na Faculdade de Educação da UFMG sobre escrita, mulheres e resistência. Em 2018, recebeu o prêmio Jean-Jacques Rousseau, pela Akademie Schloss Solitude (Alemanha) pelo seu trabalho e pesquisa com a literatura. Em 2010, foi vencedora do prêmio Memória do Jornalismo Brasileiro, promovido pelo Jornal Folha de S.Paulo, com a pesquisa História da Imprensa Gay no Brasil – entre a militância e o consumo. Já publicou os livros: Imprensa Gay no Brasil (2011), 10 Poemas de Amor e de Susto (2013), Outra Noite (2014), Escrita infinita (2014), Novelinha (2016), Uma Mulher (2017), Os Patos (2018) e Mulher-Bomba (2019).
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Notas sobre dislexia
24/07/2017 – 01:21
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Acontece quase todos os dias.
2
Aos 24 anos, eu tive um isqueiro transparente enfeitado com florzinhas amarelas. Dislexia não tem nada a ver com esquecer ou lembrar.
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Não é porque eu gosto de escrever sobre minhas pequenas doenças, que eu só escreva sobre minhas pequenas doenças. Um dia, vou escrever um livro inteiro sobre minha grande doença.
4
Dislexia não é doença. Dislexia não é nem mais um problema. Dislexia é apenas uma ocorrência.
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Reunir/selecionar textos sobre dislexia + pesquisar pessoas famosas que tiveram dislexia +
Criar relações entre dislexia/fala, fala/vergonha, vergonha/erro.
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Eu não sei o alfabeto de cor. Eu sempre acho que isso tem alguma coisa a ver com a dislexia.
7
Quando afetada por substâncias psicotrópicas, a dislexia:
(a) Desaparece
(b) Intensifica-se
(c) Estabiliza-se
(d) nda
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A dislexia é tipo meu sistema nervoso central dizendo: despacito.
9
A dislexia é uma repetição. A dislexia é uma repetição. A dislexia é uma repetição. A dislexia é uma repetição. A dislexia é uma repetição. A dislexia é uma repetição. A dislexia é uma repetição.
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Quantas mulheres não conseguem abrir mão da encenação da voz infantil, escreveu Elena Ferrante. Eu nunca gostei da minha voz justamente porque a considerava irritantemente infantil e apenas quando consegui escutar minha voz e perceber como ela ressoa no ouvido das pessoas que não vivem dentro da minha cabeça é que descobri que não tenho voz de criança. Eu tenho voz de mulher. Uma mulher rouca. O que demonstra que de fato escrevo muito sobre doenças, mas escrevo, principalmente, sobre cura.
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Outro dia, tive que fazer um exame médico. Antes de entrar no consultório, me pediram para responder o seguinte questionário:
a) Tem o hábito de imitar a voz de outras pessoas e/ou animais?
b) Quando conversa, costuma falar ao mesmo tempo que outras pessoas?
c) Costuma falar cochichando?
d) Não gosta de ouvir sua voz gravada?
e) As pessoas têm dificuldade para ouvi-la em algumas situações?
f) Você gostaria de mudar o tom da sua voz?
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Muitas pessoas acreditam que a dislexia é uma forma aguda ou explícita de distração ou de esquecimento. Esse pensamento é um grande equívoco. Um disléxico quando, no lugar de uma palavra fala ou escreve outra palavra, ele não erra porque esqueceu como se diz a palavra certa. Para a pessoa disléxica, ela está associando o nome à coisa de forma correta, mas por uma curva ou seria um buraco do pensamento, a associação é feita com as palavras trocadas. Eu acho isso genial, mesmo com todos os constrangimentos.
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Nas minhas pesquisas no Google, a maior parte dos artigos científicos define a dislexia como dificuldade de aprendizagem. Esse diagnóstico é cruel e faz com que muitas pessoas como eu se sintam burras, principalmente na infância. Chamar uma criança de burra é um dos insultos mais graves que se pode fazer a uma criança.
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A dislexia é também chamada de disortografia ou perturbação da escrita e da leitura e é considerada um problema de linguagem.
15
O filósofo alemão Ludwig Wittgenstein em seu livro Tratados- Lógico Filosófico escreveu a seguinte frase: Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.
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Há alguns anos, pensei em fazer uma tatuagem com essa frase. Depois, desisti. A linguagem por mais fascinante que possa ser é sempre menor que o mundo.
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Quando me tornei professora meu maior medo era escrever no quadro. Muitas vezes, para esconder o erro iminente – a dúvida se museu se escreve com s ou z – eu decidia não escrever.
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Certa vez, fui fazer um trabalho de faculdade na casa de uma amiga. Era completamente intolerável que uma estudante de jornalismo cometesse os erros ortográficos que eu cometo ainda hoje. Uma hora, o pai da minha colega entrou no quarto e leu no computador o que eu estava escrevendo. Ele me perguntou estarrecido: você não sabe escrever a palavra homem?
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homen, humém, homem,hómen
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No século 19, a dislexia era popularmente chamada de cegueira verbal.
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Fui albabetizada aos seis anos de idade, no pré-primário, utilizando como referência um livro chamado O Barquinho Amarelo.
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Depois eu mudei de escola. Eu tinha devoção pela minha nova professora. Ela dizia para mim que menina mais linda, que menina mais inteligente. Um dia, ela me xingou em público. Disse que minha letra era feia e torta e que eu não sabia escrever em linha reta. Fiquei de castigo para aprender a escrever em linha reta. Depois desse episódio uma coisa estranha aconteceu: comecei a odiar a professora.
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Talvez a dislexia seja um corte, uma pequena ferida que não cicatriza.
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Existem poucos artigos científicos que tratam da dislexia do tipo oral/falada e é por isso que estou escrevendo este texto para tentar entender e dar um nome aos acontecimentos que me atravessam como lâminas.
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Recordar, repetir, elaborar.
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Quando, muitos anos depois, comecei a escrever poesia, uma palavra insistentemente aparecia nos meus poemas: inapta. Alguns poemas falavam que eu era inapta para o amor outros diziam que eu era inapta para a vida, mas todos os poemas escondiam que eu me sentia inapta para a escrita. Como ousava, eu, a menina que desde sempre errou as letras e as palavras, escrever poemas?
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Adília Lopes, poeta portuguesa, escreve coisinhas assim: caspas/aspas ou tsunami/tiramisu.
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Eu queria escrever coisinhas assim: homem/hímem.
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O essencial é impor a si mesma uma medida, por exemplo, nunca responder às próprias perguntas. Elena Ferrante.
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A dislexia também incide sobre onomatopéias. No fim da festa, fui despedir da minha amiga cabritinha e sussurrei em seu ouvido múuuuu.
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(Fotografia [detalhe]: Bianca de Sá)