Um trecho de autobiografia de Roberto Rillo Bíscaro
Roberto Rillo Bíscaro é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, com doutorado na área de dramaturgia norte-americana pela Universidade de São Paulo. Edita o Blog do Albino Incoerente, desde 2009. É autor de Escolhi ser albino (Edufscar, 2012), de que faz parte o trecho abaixo.
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ESTRADA DO SOL
É de manhã, vem o sol…
(Dolores Duran)
Uma vez, quando criança, decidi apagar o sol. Tive a idéia de extingui-lo com a mangueira do jardim. Ela era carcomida e emendada. Vários pedaços de mangueiras de circunferências diferentes, ligados uns aos outros. Eram esguichos presenteados por pessoas que compraram mangueiras novas e nos deram as sem serventia, ou pedaços encontrados na rua. Juntos, os retalhos formavam esguicho frágil e puído, que se descompunha a qualquer movimento brusco do operador. Contava apenas com essa arma para cometer o solicídio. Iria fazê-lo, mesmo assim.
Tinha que ser serviço bem feito. O sol era inimigo traiçoeiro e violento. Se falhasse, ele me castigaria brutalmente. Minhas pálpebras são tão finas que mesmo com olhos fechados a luz solar incomoda. E arde. Dói. Queima. O corpo todo arde, dói e queima. Não, o sol não podia continuar a me fazer isso. Tinha que pôr um fim naquela situação.
Abri a torneira no último, franzi os olhos com força para fechá-los bem, virei o rosto para o lado “olhando” para baixo, cobri parcialmente o bico da mangueira com um dos dedinhos para dar força ao jato d’água, apontei em direção da centelha cegante e disparei. O jato saía vigoroso e mantive a mangueira naquela posição até que a incandescência amarelo-alaranjada, percebida mesmo de olhos cerrados, desaparecesse. Abri os olhos e a fogueira no céu tinha se apagado. Hélio caíra do cavalo.
Quando o sol se apagou, o mundo não ficou em trevas. Transformou-se, porém, em penumbra agradável e fresca. Não sabia dizer de onde vinha a pouca luz que sobrou. Nem me importava saber. Eu enxergava bem melhor no lusco-fusco e a pele não arderia mais. Isso era tudo o que contava. Feliz e orgulhoso, fui brincar. Fizera-se uma espécie de noite que não era noite: havia claridade, mas apenas a necessária para mim. O mundo era tão melhor sem sol… Quem precisava dele? Na escola, já haviam me ensinado que sem sol não haveria fotossíntese e, sem ela, não haveria vida no planeta. Ora, se os astronautas tinham chegado até a lua, algum cientista inventaria algo para substituir o sol. Àquela época, já adorava ficção cientifica e achava que cientista dava jeito em tudo. Eu assistia Espaço: 1999 toda semana; o professor Bergman e a doutora Russell sempre contornavam os problemas na Base Lunar Alpha. Claro que algum cientista acharia uma solução coletiva para a solução individual que eu dera para meu problema.
Nem todos ficaram felizes e orgulhosos com a façanha do banho no sol, porém. Passado não muito tempo, meus pais saíram de dentro da casa e me perguntaram, o que você fez com o sol, Beto? Não fui eu! Eu não fiz nada! Eles não acreditaram; sabiam que eu detestava o sol. Entra pra dentro que não é hora de brincar, é hora de fazer tarefa… E não mexe mais com o sol! Será possível? A gente não tem dinheiro pra comprar outro sol.
Acordei.
Na manhã seguinte à “arte” onírica, o sol permanecia no lugar. Está lá até hoje. Que continue por bilhões de anos. Se o sol “queimasse”, daria trabalho demais para a doutora Russell e o professor Bergman. Ainda não gosto daquele borrão ofuscante no céu. Prefiro os dias em que Hélio deixa os cavalos na estrebaria. Lindo para mim é dia nublado, quanto mais escuro, melhor. Li que uma das explicações para a alta taxa de suicídios nos países escandinavos são os longos períodos sem luz solar. Nutro sonhos escandinavos sem ter pensado efetivamente em me mudar do país tropical. Imagine, meses sem sol, que delícia! Uma amiga viveu na Escócia e voltou ao Brasil reclamando que era impossível viver lá: não faz sol quase nunca! Ótimo, deixa os cavalos descansarem! O castigo de trabalhar para ganhar a vida foi imputado aos homens, não aos demais animais. A impressão que sempre tive é de que a maioria ama dias ensolarados. É um tal de celebrar o verão, a luz, o bronzeado… Sou minoria. Não é fácil ser do contra… Mas, é fascinante.
Sou uma pessoa com albinismo. Sou também uma pessoa invisível. Não consto do Censo, quase nunca apareço na mídia. Entretanto, chamo a atenção onde quer que vá. Paradoxal. Uma incoerência ambulante: em pleno país do sol e das praias, fujo deles como fugimos das pessoas sinceras demais; sabe aquelas para as quais perguntamos como vai e insistem em contar a verdade minuciosamente? Gente assim, só em micro-cápsulas. Sol e praia para mim, só em versão 1.0.
A Organização Mundial da Saúde lista o albinismo como doença em sua Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – Décima Revisão (CID-10). Tecnicamente, portanto, “sofro” de albinismo porque nasci sem melanina, substância responsável por conferir pigmentação à pele, olhos, cabelos e pelos. Não tenho cor. Usei esse argumento para afugentar os eleitores do ex-presidente Fernando Collor de Melo. Quando me falavam sobre o quão maravilhoso ele era, respondia que não era colorido, por isso não votaria nele. Teria sido divertido lançar um livro naquela época: “Não Sou Collorido”. Nem sempre é bom ser colorido!
Uma coisa é a OMS dizer que sou doente, outra bem diferente é eu aceitar isso. Aprendi a questionar a “autoridade” médica. A OMS não é infalível. A organização classificava a homossexualidade como doença; hoje não mais. Infalível, só o Papa. Ah, vocês sabiam que albinos foram queimados pela Inquisição? Temos jeito de bruxo. Falhou a Igreja, falhou o Papa (ué, mas ele não é infalível?).
Imagino o albinismo como condição genética capaz de gerar doenças caso alguns cuidados não sejam observados. A quantidade de pigmentação varia de pessoa para pessoa. Nasci sem. Pelé, com bastante. Entre mim e ele há mais tons do que no arco-íris. Com tonalidades muito mais belas do que as que vemos no céu porque são humanas. Cores vivas. Não tenho cor. Então, sou cor não- viva? Prefiro não-cor viva. Viva a não-cor! Quem deveria ousar dizer qual é o “normal”? Se quem nasce sem pigmentação é “doente”, quem nasce com muita também o seria? A lógica não parece essa? Muito magro é anoréxico, muito gordo, mórbido. Muito alto, gigantismo. Muito baixo, nanismo. “Falta” e “excesso” são pecados: peca-se por omissão e por excesso. A classificação da OMS não poderia levar a esse tipo de conclusão?
Por não ter pigmentação, necessito evitar a luz solar. É clichê a expressão “fonte da vida” para se referir ao sol. Sou irremediavelmente do contra: para mim é fonte de morte. Não me bronzeio. Fico vermelho, escarlate, rubro, sanguíneo, roxo. Queimo. Se ficar sob o sol por muito tempo acabo no hospital com queimaduras de terceiro grau. Minha fogueira medieval particular.
O sol continua em seu lugar. Conforme nosso cobertor de ozônio perde o seu, a radiação cresce. E o trote dos cavalos de Hélio fica cada vez mais perigoso. Não por culpa deles. Descobri que o sol não é o inimigo mais feroz contra o qual deveria lutar. A criança do sonho escolhera alvo errado. Os verdadeiros inimigos sempre foram o preconceito e a condição social desfavorável. Antagonista ainda mais virulento, porque insidioso, era o risco de me render a eles e aceitar o papel de vítima indefesa. Não posso aceitar quando dizem que “sofro de albinismo”. Albinos sofrem mais por motivos externos ao albinismo do que propriamente pela condição genética.
Contra o sol, basta se proteger. Quem decretou que só é possível ser feliz ao ar livre? Usando chapéu, manga comprida e protetor solar pode-se até sair ao sol. O drama é que a maioria das pessoas com albinismo no Brasil não têm condições de adquirir bloqueador e o governo não possui políticas públicas de saúde que disponibilizem o produto gratuitamente para esse contingente populacional.
Muitos albinos, como eu, têm problemas de visão, mas isso não é regra geral. Sei de alguns que enxergam bem. Os que não enxergam poderiam recorrer a aparelhos óticos disponíveis no mercado. Poderiam, mas a maior parte não tem condições. Se não possuem dinheiro para o vital protetor solar, quem dirá para aparelhos especiais de visão. O governo também não faz nada a respeito.
Os olhos do albino são caixas de Pandora. Delas podem sair tipos diferentes de problemas. Geralmente, somos fotofóbicos: a luz forte atrapalha mais ainda a visão, causando desconforto e dor. Mas, isso dependerá da quantidade de pigmento nos olhos. E, mesmo os desprovidos de qualquer pigmentação ocular poderiam recorrer a óculos de sol. Problema: nem todos dispõem de dinheiro para comprar óculos escuros adequados, quase sempre com grau. Alguém fornece óculos de sol grátis para os albinos carentes? Ene a ó til!
Devidamente amparados e precavidos, albinos são perfeitamente capazes de se inserirem no mercado de trabalho. Certamente, não poderíamos ser atiradores de elite, embora existam filmes onde há albinos exercendo tal atividade (sorte dos alvos!)… Há inúmeras atividades das quais uma pessoa com albinismo é perfeitamente capaz. “Você não se encaixa no perfil que procuramos” é o descarte sutil que muitos albinos ouvem nas entrevistas de emprego. Lei de cotas para albinos? Nenhuma.
Além do paradoxo ambulante de ter que fugir do sol no país que vive em função dele, enfrentei o problema muito maior da incompreensão, como os demais albinos desta nação. Sofri também, como outros tantos milhões de não-albinos, o problema da condição sócio-econômica desfavorável. Outra incoerência: ser minoria e maioria ao mesmo tempo. Tinha quase tudo para dar errado, muitos inimigos para digladiar.
Durante anos, vivi o drama de escolher entre sobreviver e me afirmar como cidadão. Como a de qualquer um, minha vida tem sido composta por escolhas. Também como qualquer um, tive de escolher caminhos. Mas, fica mais difícil escolher rotas quando se tem o sol batendo forte na cara e aversão a ele. Muito mais complicado e perigoso desobstruir o caminho certo quando se enxerga poucos palmos à frente do nariz. Difícil demais quando o caminho, titubeantemente trilhado, é infestado de armadilhas inexistentes no percurso de quem não nasceu do contra no país amante do sol e do bronzeado.
O que segue é o roteiro de uma trajetória nessa Estrada do Sol, que sempre insistiu que eu me escondesse embaixo d’alguma pedra. Talvez alguma pedra ao lado do roto esguicho que ficava no quintal do menino que apagou o sol.