Um trecho de fabulação especulativa de Lucas Guerra
Lucas Guerra é psicólogo, professor na Faculdade Fasipe de Cuiabá e doutorando em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT). É autor de O conto da Besta: uma fabulação especulativa de estado (2020), que pode ser baixado aqui: (https://lucasguerrapsi.blogspot.com/2020/03/o-conto-da-besta-uma-fabulacao.html).
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O que importa aqui é entender que a ficção não é só um dado imaginário, mas material ou, pelo menos, um dado que existe ou pode vir a existir de fato e, mesmo não existindo, já existe.
Fabiane M. Borges (2016).
Um trecho introdutório
Este não é um escrito baseado no racionalismo científico amplamente difundido, sobre como devem ser operadas tecnologias de produção de conhecimentos legítimas. O racionalismo científico, pelas palavras de Fabiane M. Borges (2016), é, na verdade, ciência monoteísta. Ciência que decidiu posicionar-se como fundante de uma “era de luz” contra as tecnologias de produção de conhecimentos, não apenas da “idade das trevas”, mas de todos os conhecimentos ancestrais que somavam-se até aí. Em verdade, a ciência foi colonizadora de saberes e tecnologias discursivas de produção de conhecimento. Ela depositou na racionalidade estrita aquilo que deve ser compreendido como conhecimento válido sobre o mundo.
[…]
Este é, portanto, um escrito que não dialoga apenas com a racionalidade de quem eventualmente o leia. Ele dialoga com os afetos, dialoga com os imaginários, com os desejos de construir outros futuros e de atentarmos ao que os fatos do presente têm narrado como possibilidades. “O conto da Besta” foi escrito nas últimas semanas de setembro e primeira semana de outubro de 2019, na cidade de Cuiabá, Mato Grosso, em um contexto político: primeiro ano de gestão da extrema direita no país, desde o final do golpe militar e da Constituição Federal de 1988 – e que tem se mostrado absolutamente totalitário, censurador, ditatorial, cristão e militarizado. Meu escrito não poderia ter surgido em outro contexto, senão neste; o que diz da influência da realidade na construção de nossos imaginários e modos pelos quais expressá-los.
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Um trecho de O conto da Besta
Nem preciso dizer que, obviamente, a Bíblia foi revisada e atualizada para o território nacional, não seguindo a compilação católica legitimada pelo Vaticano, ou de qualquer outra fé cristã. Um Concílio Profético Constituinte foi convocado, junto da medida de exceção, para a transição no Novo Dia Um. O momento de Constituinte, que levaria alguns meses, era o próprio momento de transição. Findado, o país estaria Renascido. Para o Concílio, todos os líderes do Renascimento em Cristo pela Graça, um movimento declaradamente político neopentecostal, foram para Brasília com lideranças das congregações que se aliaram. Foram, segundo eles, receber o Espírito Santo e profetizar uma “necessária atualização bíblica, no intuito de tornarmo-nos a terra prometida”, dizia a redação oficial da convocação.
Algumas lideranças constituintes profetizaram que, algumas passagens bíblicas, Deus não pretendia mais levar em consideração como bestialidades, quando no retorno de Cristo. Outras lideranças profetizaram sobre as bestialidades que ainda desagradavam a Deus. E, alguns líderes, profetizaram outros textos completamente novos, que serviriam de base para a organização de uma sociedade Renascida na Graça, como terra prometida. A Bíblia Sagrada como Constituição do novo Brazil não era mais a mesma de antes, e a nova fora inspirada diretamente por Deus, em sua manifestação pelo Espírito Santo.
Também, alguns crimes são tratados como bestialidades menores, e a prisão antiga continua recebendo criminosos e criminosas que os cometem, como falei. Agora, essas prisões são chamadas de Complexos de Penitência Assistida. Imagino que a função seja parecida com os Centros de Terapia Evangelizadora, mas não saberia dizer algo para além do que disse sobre os dois cultos por dia e a castração química. Os Centros de Terapia pareciam bem mais incisivos na fé, se é que me faço entender. Mas não posso afirmar, até porque a nova Sagrada Constituição respaldou as penitências eternas para as bestialidades gravíssimas, e eu fui condenado diretamente à Besta. O último lugar em que poderíamos ser salvos em Cristo. Era uma prova do inferno, ele próprio, na Terra, como forma de nos mostrar a importância de assumirmos a responsabilidade pela gravidade de nossos crimes. Para orarmos pelo resto da vida por redenção e orarmos para que a penitência seja suficiente em vida terrena, para o ingresso na vida eterna.
“A Besta é um fosso construído como uma prova do inferno na Terra”, disse o Messias que presidia o país no início da transição, em discurso oficial no antigo Palácio do Planalto, agora Templo Messiânico. “Trata-se do mais rígido Complexo de Penitência Assistida, para onde irão os pecadores mais perigosos do Brazil Renascido na Graça”, continuava. O novo Messias, que assumiu o cargo de Presidente da República, não disse onde a Besta fora construída, nem sua dimensão, e nem do que necessariamente se tratava. Afinal, os cidadãos de bem, os justos, não precisavam temer a Besta. Mas, quem deveria temer, então? No início, nós nos questionamos. Mas, também, em seguida descobriríamos.