Um trecho de memorial de Mário Cezar Silva Leite
Mário Cezar Silva Leite é professor titular da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), atuando no Departamento de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO). É autor de, entre outros, Mapas da mina: estudos de literatura em Mato Grosso (2005), Literatura, vanguardas e identidades: nas brenhas do regionalismo (2015) e Memorial [in?]descritivo: auto-ópera-biográfica-burlesca para-professores-titulares-em-literatura (2017), do qual faz parte o trecho abaixo.
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Estilhaço primeiro: da outra ordem das coisas
De rodo e pano de chão, cantarolando, talvez um pouco alto, passando pano no chão daquele enorme corredor de lajotas em preto e branco e colunas azuis, no meio da tarde quente e ensolarada, sentia-me quase uma gata borralheira. Uma princesa entre borralhos, à espera da transformação noturna quando o príncipe vinha. Cantarolava eu, quem dera pudesse a dor que entristece fazer compreender os fracos de alma sem paz e sem calma ajudasse a ver que a vida é bela só nos resta viver, Ângela Ro Ro, ano de 1980, primeiros meses, Cuiabá, Mato Grosso, sede do 9º. Batalhão de Engenharia e Construção (9º. BEC), Soldado Cezar se apresentando! “Essa música é linda!” Escutei atrás de mim uma voz forte, um pouco rouca e doce ao mesmo tempo. Gelei na espinha, imaginei a cena: soldado, fardado, no meio da tarde, passando pano no chão do corredor do quartel, aos esgoelos com “Só nos resta viver”, de Ângela Ro Ro, a cantora “sapatão” mais assumida de todas as muitas que fazem parte da MPB. Virei-me pronto para a esculhambação que viria e que era o método de tratamento mais dócil entre superiores e soldados: “Tá contente, Mocorongo? Tá feliz? Quer mais chão, mais pano? Paga 30!” Odiava isso, “paga tantas e mais umas tantas”. O pagar significava largar o que se estava fazendo e praticar exercícios físicos em posições difíceis e muitas, no mais das, vezes, em posições humilhantes, vexatórias e o número era o tanto de vezes que o “exercício” deveria ser repetido. Isso era onde se estivesse, qualquer lugar era “o” lugar do “paga 50!” Odiava! Mas não, deparei com uma cara, bem acima da minha, risonha, bonita, doce, gentil. Um tanto estranha para um rapaz grande, forte, de formas arredondadas, sem ser gordo ou definido por academias de ginásticas. A masculinidade do corpo destoava um pouco daquele rosto quase de criança feliz e boa. Sem saber o que dizer na perplexidade, estava esperando um daqueles indescritíveis sargentos ou tenentes com seus impecáveis vocabulários de xingamento, disse desculpe. “Pelo o quê?” Ah, sei lá, estava parecendo um doido cantando. “Nada, bom gosto musical não precisa ser escondido”. É. “Paulo. Meu nome é Paulo”. Prazer, Cezar. “Eu sei, já vi você por aqui”. Ih! Droga, todo mundo aqui no quartel já sabe que sou viado! Merda! É? “É. Você é um tipo que a gente nota”. Meu Jesus!!!! “Então, nos vemos por aqui, por aí”. Ok Paulo, ok. Não consegui imaginar outra coisa para aquele episódio, aquele encontro. O cara, outro soldado, notou que havia “algo de diferente” em mim, um “jeitinho” talvez e sabe se lá por que decidiu se aproximar. Num quartel, em 1980, em Mato Grosso, o que poderia ser? Normalmente, historicamente, sabemos que essas aproximações quase cem por cento pretendem a chacota, a difamação, o bullying, não raro a violência. Já não considerava a melhor coisa do mundo estar ali, mas sofrendo chacotas e outras coisas, ia ser muito complicado. Por sermos de pelotões diferentes e ele ser uma espécie de líder entre os soldados ouvi falar dele, sempre bem, por outros soldados, mas por uns quatro dias não o vi. Também não notei nenhuma movimentação diferenciada em torno a mim dentro do quartel. Parecia tudo normal. Pelo sim, pelo não, fui me desarmando. Nossa primeira casa, minha e de Bismarck (Duarte Diniz), foi uma casa de Cohab na Várzea Grande, nas proximidades do aeroporto, um bairro chamado Ipase. Recém unidos, com a proposta de construir uma vida a dois, nossa lista de bens materiais resumia-se a: um colchão de casal no chão do quarto, um lençol de algodão marrom escuro com sobre-lençol, duas fronhas, dois travesseiros, uma geladeira, um fogão na cozinha e uma mesa com duas ou três cadeiras muito velhas, mesa e cadeiras, de longe pareciam coisa de “móveis antigos”, mas não, eram velhas mesmo e eu não tinha a menor ideia de onde tinham vindo; num outro quarto um aparelho de som de tocar vinil, não tínhamos noção da possibilidade dos Cds posteriores, onde ouvíamos muito Angela Ro Ro, Marina, depois chamada de Marina Lima, Bethânia, Rosa Passos, seu primeiro LP, Milton Nascimento, Minas e Gerais, Gonzaguinha, Belchior, Nana Caymme, Marilia Medalha e por fim uma odiosa Joana que era da curtição de fossa de uma tal moça que morou conosco nos dois primeiros anos de nossa vida em comum. Diga-se, capítulo à parte; Na sala um banco para três pessoas de madeira; no terceiro quarto, habitava a tal moça com mobiliário de quarto de dormir mais completo e adequado; enfim, creio que era isso. Entretanto, outros bens, muito mais importantes iam se materializando, criando formas e amalgamas entre nós que após trinta e sete anos juntos estão cada vez mais fortes e importantes. Cronologicamente, linearmente, memorialmente, narrativamente parece haver uma sequência lógica que me leva, ou me traz, joga-me a eles, joga-os em mim, até esses dias e aquilo que acredito que tenham sido. Mas não sei se isso é tudo. Ou se tudo foi assim. Não importa, importa porque de alguns modos eles estão aqui agora comigo me construindo e sendo construídos por mim. Como creio então que cheguei nesse ponto: dezoito para dezenove anos, servindo o quartel, recém casado com outro homem? Entendi-me homossexual desde logo, adolescente ainda. A auto rejeição é um componente desastroso. Por que não é fácil aceitar, muito menos aceitar-se. E no fim, inevitável, apenas atrasa o processo de aceitação. O problema é que nesse ínterim decisões, nem sempre adequadas ou sábias para o futuro são tomadas. Muitos na tentativa de se preservar, ou esconder, casam “heteromente”, têm filhos, netos e tudo mais e passam a vida em um jogo de esconde-esconde. Até agora não decidi o quê exatamente sinto em relação a eles. No fundo obrigo-me a acreditar que cada um sabe o melhor para si, mas… Não sei. No fim parece-me uma situação triste e de tensão constante. Há outros que optam pelo estereótipo absoluto. São os chamados “bichas loucas”, assumidíssimas, sempre muito alegres, exuberantes, chamativas, “maravilhosas”. Compõem grande parte da alegria, do charme, da diversão e da ideia generalizada, nem sempre correta, de ser e viver gay. Nesse aspecto, durante muito tempo sentia-me e vivia no primeiro grupo. Não que não tenha sido sincero com a vida “hetero” anterior a ter me assumido. Até chegar ao fato de fato do sou gay, o que vivia era honesto, mas sempre em “suspeição”. Tive várias namoradas e realmente gostei delas e nossos relacionamentos eram “normais”. Há em mim uma forte dose daquilo que entendem por “masculinidade” quer na aparência, tenho uma aparência um tanto “máscula”, seja lá que isso for, e tenho um comportamento um tanto masculino também. Houve um tempo em que tentava frisar isso de várias maneiras porque tinha horror que pensassem que eu era viado. Mesmo depois de já saber que era, namorar garotos ou estar casado. A aceitação embora se desse no plano prático da coisa, eu estava, aos dezoito anos, casado e vivendo maritalmente com outro homem, no plano interior e emocional era um pouco mais complicado. No fundo, não sei bem o que temia, mas temia. Nesse caso é difícil localizar com clareza um ou “o” inimigo. Com o tempo descobri que “o” inimigo era eu mesmo. Ou melhor, meu preconceito, minha homofobia, em relação a todos e, principalmente, a mim mesmo. O preconceito leva-nos a discriminação de categorias excludentes de nós. Então, ficamos, estamos sempre entre “eu” e “eles”. O “eles” como todo e qualquer indesejável, os que devemos a todo custo não se misturar, não se confundir, não se aproximar. Negação das negações! Não precisei ser brilhante, nem gênio para perceber que pouca coisa me diferenciava d’eles. O moço aloirado chamado Paulo encontrei-o poucos dias depois na carroceria de um caminhão do quartel que na saída do expediente ia para Várzea Grande e dava carona para os soldados que moravam lá ou pelo caminho. Foi dali, daquele fim de tarde para sempre. Simpatia, carinho, amizade, amor imediatos. Amizade intensa. Dos tempos que passei fora do quartel de Cuiabá, em Peixoto do Azevedo, mantínhamos contato por Bismarck que também havia se tornado grande amigo dele. Ele era uma presença acolhedora, pelo tamanho, pela docilidade, pela alegria, pela força-frágil que exalava. Numa manhã de outubro, de segunda-feira, muito cedo, Bismarck, com nosso fusca, nosso primeiro carro, deixou-me na portaria do quartel e foi para Universidade. Havia um agitado burburinho entre os soldados de serviço na portaria. “Desertou!” “É, não voltou!” Naqueles meses Paulo estava “no trecho”. Isso queria dizer que o soldado não estava na sede, Cuiabá, e sim nas estradas trabalhando. Ele tinha sido destacado para Cáceres ou algum lugar assim, não muito longe de Cuiabá, que o possibilitava voltar para a cidade nos fins de semana. Eu estava responsável pelo zoológico na sede. Meu reino entre macacos, onças, cobras, jacarés, tartarugas, pássaros e outras espécies. Todas sob os meus assustados cuidados. Tinha medo dos bichos, de todos eles. Mas, alimentava-os, limpava suas jaulas, cuidava para que sempre estivessem bem. O que aconteceu? “Aquele soldado Paulo, desertou.” Como? Não. Eu estive com ele na sexta-feira. Ele ia voltar para o trecho. “É, parece que não. Mandaram chamar o capitão. E o sargento foi, parece que, lá para casa dele.” Estranho. O capitão tá aí? “Tá.” Quando dei por mim estava em frente ao capitão, em sua sala, perguntando: é verdade capitão? Minhas surpresas e dores estavam apenas prenunciando-se. “É, é verdade. Foi a mãe que achou.” Achou, como assim achou? “Na árvore, no abacateiro do quintal.” Eu não estou entendendo. Mas nesse momento talvez já tivesse entendido tudo. “Enforcado, soldado Cezar. Parece que ele se enforcou no abacateiro do quintal. Ligaram avisando de manhãzinha. Mandei o sargento com soldados para resolver tudo.” Meu Deus! Meu Deus! Disse apenas, eu vou lá. Não sei até hoje se fui liberado para ir ou não, mas naquele dia não voltei ao quartel. Quilômetros me distanciavam de meu amigo enforcado em um abacateiro. Do bairro Coxipó, onde fica o 9º. BEC até a Várzea Grande onde morávamos era bem longe nos anos de 1980. Poucos ônibus, trajetos insuficientes. Quase duas horas depois, desço no ponto de ônibus próximo à casa de Paulo. Quando observei que havia na esquina uma movimentação incomum, estanquei. Não sei quanto tempo ali parado, esperando que tudo sumisse e a manhã de segunda-feira fosse apenas mais uma, transitando sua normalidade insonsa por si mesma, pelo bairro, pelas ruas, pelos transeuntes, pelos quintais, pelos… abacateiros. Desejava imensamente apenas isso, uma manhã de segunda-feira, uma manhã em si mesma, só manhã. Eu cozinharia carnes para as onças, levaria bananas para os macacos, galinhas vivas para as cobras, lavaria as jaulas, varreria todo o pátio do zoológico, acenderia um cigarro e pensaria, no fim de semana vamos, Bismarck, Paulo e eu ver o show do Gonzaguinha. Era para ser assim. Era para ter continuado a ser assim. Eu ali na esquina rogando por essa segunda-feira. Ela não veio. Não, não veio. Então, acendi um cigarro na esquina, do ponto de ônibus, onde letárgico permanecia a não sei quanto tempo e entrei nessa outra manhã de segunda-feira, estranha, triste, incompreensível, de meu amado amigo morto.