Um trecho de novela de Walner Danziger
Walner Danziger nasceu na cidade de São Paulo. Escritor, dramaturgo e diretor de teatro. É autor de mais de 20 textos teatrais encenados e dos livros: Papel de embrulhar peixe (poesia), Não acorde o cão Durante o pesadelo (novela), Ainda cometo um samba (romance), Confraria dos perdedores & outras crônicas de 2ª (crônicas), Gilete na mão do macaco (contos e outras narrativas), Entre a fome e a fúria (contos, crônicas e poemas) e Teatro vol. 1 – Três peças.
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Trecho da novela Não acorde o cão durante o pesadelo (Edições Incendiárias, 2017)
Céu vermelho envolve a madrugada da Cidade Cinza. Orgia perpétua entre lápides, covas rasas e imagens santificadas. Buquê de ervas, defumadores e incensos alimentam as entranhas do Cemitério da Consolação. Rosas vermelhas e brancas sobre o túmulo de Sarita Baleia. Um brinde à rainha das putas. Notívagos aplaudem, mendigos bailam sobre o mausoléu da Família Matarazzo. Ditirambo. Minas do Baixo Augusta e Estação da Luz, trans da Rego Freitas satisfazem famintos desprovidos de capital pelos corredores apertados, espatifando vasos encardidos com flores esquecidas. Sinfonia de cães. Bêbados ocupam a pista. Poetas e mortos se levantam.
Sarita Baleia. Gorda, monstruosa e excêntrica, sua massa adiposa forrada por tatuagens sobrepostas, indecifráveis. Rainha, cafetina, comandante da putaria de São Paulo de Piratininga. Vítima da intolerância, seu corpo amoroso mutilado, paradeiro revelado pela esquadrilha negra de urubus, sobras mal enterradas num lodaçal pras bandas de Suzano. Tambores, fogos, o rosto gordo, disforme, grotesco e multicolorido de Sarita Baleia. Cabelos azuis e muita maquiagem nos lábios sebosos, bochechas monumentais. Celebração. Dois anos sem Sarita Baleia. Remédio é dançar. Em São Paulo, Caracas, Medellín, em todos os subúrbios do planeta, negócio é dançar e cantar e beber e festejar e escrever e esmurrar impiedosamente a vida.
Cortejo de ninfas abre alas pela alameda principal. Cada mocorongo escolhe seu par e se ajeita por entre ou sobre os túmulos. Evocado, o espírito gigante e nu de Sarita Baleia se manifesta. Macharada geme, apupa, assobia sob a morna neblina paulistana.
Scorpion. Velho, muito alto, magro, cabelos compridos e grisalhos. Rosto completamente tatuado, alargadores nas orelhas. Em plena forma, veste apenas uma sunga vermelho sangue com enchimento e um par de chifres luminosos. Cavanhaque demoníaco arrasta duas garotas atléticas presas por coleiras. Libertas, dançam e brincam movimentos acrobáticos com malabares de fogo. Insinuantes, coro selvagem urra quando tiram biquínis e botas escuras. O diabão se desfaz da sunga e o gigante ereto que pula pra fora dela não é enchimento. As duas atiçam. Seios, mãos, línguas, se pegam pra valer enquanto o velho, vaidoso se diverte com sua criatura de estimação. As ninfas se beijam, se exploram. Coreografia pornô. Os brutos bebem e se atracam com mãos-bobas e chupões em suas escolhidas. Outros se masturbam trepados nas sepulturas. Violadores de cadáveres dançam e quebram anjos, Cristos e Marias de Nazaré. O velho diabo, possuído, passeia com sua criatura em cada fenda, cada orifício lubrificado e possível das ninfas que gemem canastronas, se pegam, se desesperam, manipulam ao mesmo tempo a calda que a criatura tem entre as pernas e ele jorra furioso, efeitos especiais leitosos sobre a plateia de criaturas do arrabalde que pulam, gritam, gozam em apoteose. O cemitério aplaude. O diabão e suas partners agradecem o público e saem de cena. Santificada, uma delas se desgarra e entrelaça sua mão na minha.
Olhos Brilhantes. Ninfa de fogo, piercing no nariz e um par de asas que nos faz atravessar a muralha branca do campo santo. Descemos a passos lentos a Rua da Consolação pra uma saideira e um sanduíche de pernil no Estadão.
Sobre o mármore gelado, o espectro de Sarita Baleia. Suas carnes imensas, tatuadas e nuas tremem extasiadas. Gargalhadas pagãs.
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