Um trecho de romance de Cinthia Kriemler
Cinthia Kriemler é romancista, contista e poeta. Carioca, mora em Brasília. Tudo que morde pede socorro (Romance. Editora Patuá) está sendo lançado em junho de 2019. Publicou também, pela Editora Patuá: Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Conto, 2015) — semi-finalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Vendas pelo site: (https://editorapatua.minhalojanouol.com.br/produto/84047/tudo-que-morde-pede-socorro-de-cinthia-kriemler)
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Capítulo do romance Tudo que morde pede socorro (Romance. Editora Patuá, 2019)
Tanto tempo. E eu ainda não me acostumo a olhar para o que restou do meu braço. Cotó. Foi assim que uma mulher se referiu a mim. Não aqui. Aqui as pessoas pensam, mas não dizem. Existe uma educação mineira que impede o deboche, que impede a grosseria. Mas por dentro o pensamento é o mesmo: cotó. Talvez eu não devesse ter vindo para esta casa. Teria sido melhor um sítio, um lugar mais afastado das pessoas. Mas eu sou asfalto. Não há sobrevivência para mim em meio a galinhas e porcos e vacas e cobras e pés de café e adubos e enxadas e chão de terra. Além do mais, o que eu faria no mato sem a metade de um braço?
Dois anos atrás eu não conseguiria me imaginar fora de uma cidade grande. Fora das salas de aula. Longe dos rostos adolescentes que por tantos anos foram a minha medida de humanidade. Dois anos atrás eu era outra pessoa. Dividida entre diários de classe e traduções. E havia Mateus. Sugando o pouco de ar que eu respirava entre um trabalho e outro. Implicando com tudo. Reclamando de tudo. Do dinheiro pouco. Da casa desarrumada. Da minha aparência. Mateus. Que só parava de falar quando estava me chupando ou mordendo os meus peitos. Que só se esforçava quando metia dentro de mim o caralho apressado. Concentrado nele mesmo. Sem saber que eu não queria transar no chuveiro, que eu não queria trepar assim que acordava, que eu não queria ser fodida de quatro. Pelo menos, não todas as vezes. Mateus e a luz sempre apagada na hora do sexo. Eu achando que era vergonha. E era. De mim e do meu corpo gordo. Dos meus cabelos cortados bem curtos — uma necessidade para quem se levantava às cinco e meia da manhã e ia dormir à meia-noite. Mateus e o primeiro empurrão. Quando eu descobri a primeira traição. Mateus e os outros empurrões. Quando eu passei a confrontar as mentiras e as desculpas cada vez mais fracas que ele me dava — e que às vezes nem dava. Ridícula, louca, descontrolada. Essas eram as palavras dele. Enquanto houve palavras. Quando eu quebrei o braço, tive a certeza de que aqueles não eram apenas empurrões. As marcas roxas no meu corpo contavam um enredo diferente. Mas foi só quando ele me acertou com um murro que eu comecei a perceber os meus muitos por quês desviados das respostas certas. O mais difícil não foi arrancar de mim toda aquela culpa imensa e descabida. Foi me acertar com a dúvida. Se eu devia ou não mandar Mateus embora. Se eu devia ou não contar para alguém. Se eu devia ou não chamar a polícia. Eu tentei. Mas ele chorou. Me abraçou, pediu desculpas por erros que nem eu mesma sabia que ele tinha cometido. Na vez seguinte, jurou que procuraria ajuda. Um psiquiatra, um padre, um grupo de suporte. Dias depois, me deu uma surra. E me estuprou. De quatro. Enquanto me chamava de vaca, puta, piranha. Ali mesmo, na cama em que antes havia consentimento. Assim que ele gozou, me deu um soco no rosto e outro no estômago. E trancou a porta. Dois dias presa em casa. Dois dias servindo de pasto para taras que eu nem sabia que existiam. Surras. Gritos abafados por socos e chutes. Deboches. No terceiro dia, a campainha tocou. E o rosto de Gabriel foi uma aparição. Gabriel, meu arcanjo protetor. Preocupado porque eu estava atrasada com a entrega de um trabalho, porque eu não atendia o telefone. Mateus queria ficar, mas Gabriel o expulsou. E ele se enfureceu. As perseguições começaram. Um canteiro destruído, uma pichação, uma vidraça quebrada, o PUTA escrito no muro com letras vermelhas. Atos sem testemunhas. Foi só quando ele tentou me atropelar que eu realmente acreditei no risco que estava correndo. E um juiz me concedeu uma medida protetiva.
Não gosto dessas lembranças. O braço lateja toda vez que eu fico ansiosa. Ainda mais quando estou usando a prótese. Mas tenho de ficar com ela. Com as luvas que tenho usado por causa do frio, as pessoas demoram um pouco mais para reparar em mim.