Um trecho de romance de Cristina Judar
Cristina Judar é autora das HQs Lina (Editora Estação Liberdade) e Vermelho, Vivo (Devir). Seu livro de contos Roteiros para uma vida curta (Editora Reformatório) recebeu Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014. Em 2015, realizou o projeto autoral Questions for a Live Writing na Queen Mary University of London. Em 2017, lançou seu primeiro romance, Oito do Sete (Editora Reformatório), contemplado com o ProAc de Literatura 2014.
Abaixo um trecho de “Magda”, uma das quatro partes que compõem o romance Oito do Sete.
***
No chão de esterco e relva molhada senti o umedecer da nuca.
Formigas passeavam ligeiras pela minha relva capilar, traçando destinos.
Mirei os céus de nuvens e fundo cromaqui invadido por copas verdes e frutos ainda mais. Inspirada pelas rotas dos insetos, eu queria vaguear com minha moto pelas estradas daquela comunidade.
Pontudas as botas, o jeans desbotado dobrado na barra, pisei duro por campos macios, cabelo meio raspado, camiseta preta com dizeres dourados, uma ponta de capim-limão triturada pelos dentes da frente.
Eu estava repleta de um sentimento prazeroso, ventos novos na pele do rosto, as formigas me desvelavam, eu desejava traçar possibilidades infinitas de ser, inspirada pela liberdade do rebelde Travis, personagem principal do meu filme preferido, If, de Lindsay Anderson. Aos dezenove anos, soube o quanto eu e ele éramos feitos da mesma substância, ele personagem, eu na figura de pessoa real. Como naquela cena em que tudo fica repentinamente preto e branco mas contraditoriamente feliz, a velocidade é minha única amiga, não havia nada mais a fazer além de devotá-la como uma de suas discípulas mais dedicadas. Ao primeiro ronco do motor, disparei em um solavanco, a rota me trouxe a impressão de estar imóvel enquanto a paisagem passava ao meu redor. Pelo canto dos olhos, captei em segundos cercas brancas e animais nas pastagens, lagos e patos, hortaliças em verdes quadrados imensos, uma ou outra casa debaixo de naves espaciais – as tais antenas parabólicas – e, puta que pariu, no bar de beira de estrada, por pouco não derrubei o cartaz que anunciava a galinhada, prato do dia.
Cachorro cor de mostarda me olhou fixamente, estendeu-se a minhoca na lajota fosca, fósforo riscado na sola da bota, bati a mão no balcão, é caninha que eu vou querer, ah, rabo de galo, tá, pode ser.
– Você é daqui da cidade? – perguntou o homem enquanto girava a bucha no copo.
– Não, mas morei aqui alguns anos. Meu pai tem uma fazenda na região.
– Fugindo da violência? – O inquérito por debaixo das lentes.
– Não exatamente. O excesso de paz pode ser mais violento do que a vida urbana. Aliás, quando canso de não ter o que fazer aqui, faço as malas e parto pra cidade.
Não tenho parada definida, é como se eu vivesse, de fato, em trechos espalhados por vários cantos.
– Também canso de ser um só e de estar em um só lugar. Queria ir pra lá e pra cá, e que tudo fosse duplicado – duas mulheres, dois carros, duas casas, dois cachorros.
Sorriu os dentes amarelos de tártaro e mazelas, incisivos.
Um naco de torresmo me fez balbuciar que eu apenas não pretendia ter raízes num só local, essa coisa de vida dupla já era com ele.
Partido o torresmo, me lembrei de um sonho no qual eu perdia todos os dentes, eles simplesmente amoleceram e caíram. No desespero, me ajoelhei no chão pra catá-los, como se assim pudesse solucionar alguma coisa. De olhos abertos na escuridão, custou um tanto pra eu cair em mim, até que, enfim, caí.
Do lado de fora, o cachorro descontrolado, o dono do bar nem aí com os latidos, não dava pra ouvir o que ele dizia, sua boca mastigava palavras silentes. Na pausa do ruído externo: – … até de avião veio gente pra cá, alguns estacionaram naquele terreno descampado ali atrás, apontou, toalha no ombro/ Hã, quem veio pra cá de avião?/ O povo da cidade grande, pra assistir a menina cantora do orfanato das freiras/ Nunca ouvi falar/ É cega e canta desde pequena, uns nove anos, a pobre sabe todos os sucessos/ Ah, ótimo…/ Ouve um trechinho da gravação de Pequetita/ Não, tenho pressa/ Então participe do sorteio, ela precisa gravar um cd mas as freiras não têm como arcar com a despesa, o prêmio é aquele urso ali de pelúcia, da prateleira, se tiver filha ou sobrinha…/ Nem uma (último gole), nem outra (copo no balcão)/ Mas compre um cupom, não custa ajudar, dois reais e não se fala mais nisso/ Vai, manda/ Escolha um número: treze, dezesseis, quarenta e quatro/ Treze/ Boa sorte, o resultado sai daqui a pouco, vai esperar?/ Qualquer coisa liga pra avisar, tá aqui o número, meu nome é Magda, quanto devo?
Barulho seco veio da entrada, o cachorro latiu mais, furioso.
Boas tardes/ Como anda, seu Bastião?/ Bem, obrigado, manda um bife a cavalo/ Solta um bife a cavalo/ Eu impaciente/ Ficou nove e cinquenta tudo/ Pago com uma nota de dez e pego o troco em balas, passo pela porta, a moto agora virada no chão, quem empurrou se não havia mais ninguém…? Bastião. Volto pro bar, o homem com a cara enterrada no prato, rasgava o bife a cavalo, você viu quem derrubou a minha moto?/ Agarrou o garfo, não vi, não, unhas de graxa/ Então quem derrubou, quem será que derrubou a porra da moto lá fora?/ A cabeça (ou o rabo) da minhoca levantou-se/ Não sei, moça, e fala baixo que aqui ninguém é surdo, acontece, deve ser o vento, ele olhou pro dono do bar e pro zíper da minha calça, pra minha cara, desde quando mulher se interessa por moto?/ O vento, foi o que você disse?/ Os dois homens riram.
Na adolescência, eu usava a cor roxa como forma de contestação, como aliada nos momentos de dificuldade – apesar do meu esforço em apagá-los dos meus fundilhos da alma, eles vinham à tona em ciclos. Na blusa que cobria o uniforme escolar, nas unhas sobre o encosto do banco da igreja. Tudo muito roxo e vibrante, enquanto eu procurava a saída com os meus olhos de kajal preto. As freiras, de suas bocas espumantes de tesão virginal, perguntavam o que havia de errado comigo, eu não agia de acordo com os princípios da igreja, daí os episódios de coação legítima, as reuniões na sala da diretoria, suas vozes repercutidas nas paredes, os solenes móveis regados a lustra-móveis. jc arfava no crucifixo, as freiras nunca saberiam o que era carregar o peso do mundo no peito, perguntavam a razão de tamanha dispersão e desinteresse nas aulas, um caso amoroso talvez, eu a querer arrancar-lhes os olhos, mandar-lhes às favas, socar-lhes os órgãos e ser o que eu quisesse ser.
O vento batia, os homens riam/O vidro de conservas arremessado em Bastião/ Tá louca?/ O vaso de flores atirado na freira/ Ovos de codorna pelo chão, olhinhos voltados pra todas as direções/ Agarrei o crucifixo de jc/ Vou chamar a polícia, mulher macho filha da puta!/ Bastião coberto por um manto de vinagre e cacos/ Chamem o segurança!/ Minhas unhas roxas riscaram o ar/ Chama quem quiser, seu cuzão do caralho/ Rasguei a pele da freira/ Parti como quem matou alguém/ Bateu a porta/ Gritos às minhas costas. Levantada a moto, o motor rosnava, esmagada a minhoca, eu queria voltar pra cidade o quanto antes, queria voltar a ser o que eu era antes, quem mandou ir praquele fim de mundo do caralho, não havia mais formigas em mim, as árvores assombrosas e verdejantes, corri pela estrada, os olhos de Travis às minhas costas e um sorriso de lábios rasos, o resultado: número treze.
O pior é que havia espaço na moto pra carregar aquele maldito urso de pelúcia.