Um trecho de romance de Graziela Brum
Além de escritora, a gaúcha Graziela Brum é uma ativista cultural. Idealizadora do projeto literário Senhoras Obscenas, organizou e ajudou a publicar mais de 200 mulheres poetas e prosadoras em três livros de antologias.
Vencedora de dois concursos ProAc em São Paulo, com Fumaça (2014) e Jenipará (2019) – que é o primeiro romance de uma trilogia sobre a Amazônia. Também publicou Vejo Girassóis em Você” (Lumme), de prosa poética.
A escritora frequentou o Centro de Apoio ao Escritor (CAE) da Casa das Rosas (São Paulo). Com o lançamento deste Jenipará, Graziela Brum inicia uma residência literária, a partir do Rio Tapajós. A luta por mais espaços editorais para as mulheres Brasil adentro e mundo afora continua.
Site: Graziela Brum / Literatura
Para adquirir Jenipará no pré-lançamento: Jenipará / Pinot Noir
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“A primeira cena de Jenipará escrevi em 2015, de lá para cá, montei peça a peça da história sem saber de qual rio falava. Foi em 2018, quando resolvi conhecer a Amazônia, que me deparei com o ambiente que intuitivamente habitada meu texto. Conheci Alter do Chão e o Rio Tapajós durante a festa do Sairé, uma manifestação popular que mistura o sagrado e o profano em inúmeros rituais religiosos e de danças folclóricas. O livro conta a história dos moradores de uma cidade fictícia construída à margem do rio Jarurema, no baixo Amazonas.
Jenipará foi contemplando com a bolsa de produção e publicação de obras de ficção – ProAc 2019. Deixo aqui trechos do livro que será lançado em março de 2020 em São Paulo”.
Graziela Brum
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Nota de um habitante de Jenipará: Há de se dizer quem somos e nada além da nossa história às margens do rio Jarurema. Há de se contar ao mundo a capacidade de carregar nas mãos, no peito, na cara, os desejos e os instrumentos utilizados na construção da cidade-paraíso. Foi nela, na sua foz, que nascemos para ganhar rios e percorrer matas. Dessa água, do Jarurema, a mesma do parto, recriamos o mundo, dela nos alimentamos. Aqui, como em qualquer lugar, os receios com o futuro, mas é preciso dizer que foi na costa do rio Jarurema, a escutar o grilar dos insetos, o cantar das ararajubas, o murmurar das ondas que aprendemos a ter fé. Ao lado da Pedra Grande, na Ponta do Cururu, se construiu nossa história, e ali Jenipará se levantou de pôr em pôr de sol.
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Uma mulher sabe a hora. Ainda mais quando outubro, o vento corta caminho; do jardim, irrompe jucá japana; da terra, a jurubeba malvina. Na esquina ribanceira, mais vento, e assim, brota do fundo de um centro, todos os centros, a floresta. Nas fêmeas emergem os sentidos e dali, pela janela da cozinha, entra o perfume de aroeira e me faz lembrar o cheiro do corpo de Zé Bidela, quando no meio da noite me agarra entre cipós e liames e aí nos misturamos até o dia clarear. Difícil mentir para si mesma, é a natureza que pede. E o mundo dá volta ao redor da cintura e, sozinha, em frente à pia cheia de louça, ligo o rádio na estação Tapajós. O locutor avisa: – são 3 horas e 53 minutos. Lá fora, ciganas se refastelam por trás das folhas de um jenipapeiro. Caburés soltam ali perto um canto tiritado de chamar a noite, e nos meus afazeres de casa, escuto minha rádio:
“Eu vi a lua saindo
Por de trás da pimenteira
Quem não sabe dizer verso
Não dança desfeiteira”
Salve Veriana Brandão, dona dos versos populares, aqui tem desfeiteira para começar o dia com a brincadeira vinda lá dos seringais, coisa bonita demais. Carimbozeiros, fiquem aqui, com seu locutor Nelson, na Rádio Tapajós 81 FM, em mais um entardecer em Jenipará. O rio hoje manso, água para esperar o sol descer na ponta do Cururu, lá do alto da Pedra Grande, oh!, coisa mais linda que tem é a vista no final do dia na nossa cidade. Fique aí, porque vem chegando a música Cobra Grande.
Salve! Salve aos mestres de Carimbó. Magá de Maiandeua, Chico Braga, Verequete, Montana, Gudengo, Camaleoa, Roque Santeiro, peço licença, a bênção e autorização para trazer a música de pau e corda. Salve à cultura popular e viva o Carimbó!
“Noite escura chuvosa canoeiros temem navegar
O perigo nas águas aumentam pra quem se atrever enfrentar
As ondas, trovões e relâmpagos ideal pra Buiúna boiar
Com seus olhos gigantes brilhando esperando pra se alimentar
De algum barco com pescadores descendo ou subindo o rio
Tão grande que causam horrores parecem faróis de navio.
Rema, rema canoeiro, a canoa não sai do lugar
Cobra Grande já fez o banzeiro, redemoinho pra ela virar.
Esquitundum,
Esquitundum
Esquitundum”
A música que toca me faz recordar o baile do Boró, quando Zé me corteja de braços abertos e me toca as coxas por baixo da saia na dança do carimbó. Um arrepio me sobe as pernas nas mordiscadas que Zé me dá na ponta da orelha. Oh!, coisa boa é o carimbó. Quase esqueço a lida da casa. Lavar o pato com gotas de limão e folhas de chicória para adiantar o almoço do dia seguinte. Não quero ver Dona Marinez com aquele azedume na cara, a patroa gosta de reclamar do serviço. Mulher agoniada, tem o dedo invocado a serpentear feito cobra cipó nos móveis da sala. Quer encontrar pó, e manda arrumar o quarto, limpar a sala, passar o ferro nas roupas, pano nos vidros. Depois confere serviço por serviço. Deus lhe livre se a comida não estiver pronta na hora que o Dr. Lima chegar em casa.
Aqui na estação Tapajós 81 FM são quatro horas, tem tambaqui no rio, quem come tambaqui nunca mais sai daqui. Cuidado com o tucunaré. Dia tranquilo na nossa cidade, o sol brilhou, bom para ficar numa rede, admirando o rio. Lembrando que amanhã é feira dos alimentos caseiros na Praça Carimborari, tem os bolos da Alzira, arroz de jambuxá, prato típico da nossa cidade, tem tacacá e maniçoba na barraca do Lazaro. Tem açaí, tapioca, suco de taperebá, Vem você para Praça. O grupo Jaraqui sobe ao palco principal às cinco horas da tarde, minha gente carimbozeira vai ser demais. Patrocínio: Açaí de Verdade, porque açaí de verdade é só aqui. A música que acabamos de escutar é do nosso Mestre Chico Malta, Cobra Grande, maravilha do Mestre Chico. (…)
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…cricrió, cricrió… cricrió, cricrió… foi a secura dos dias ou frio da noite que apagou da memória o caminho de volta; daquela altura, ouvia uma vez outra o som da madrugada, mas em nada parecia com o som deles, aí me dei conta, havia me perdido e que, dali em diante, precisaria me virar. Juro, não queria, mas despencou sobre mim o desânimo, meus ossos fininhos se arquearam e me sentei no galho de uma pitombeira a esperar o destino. Eles fugiram para outros rumos. Cada um se salva como pode. Agora o meu problema era que com eles foi-se embora minha alegria, mesmo assim cantei, cantei …cricrió, cricrió… alguém, um ser que fosse, na Amazônia, na terra, escutaria meu sinal de alerta, haveria de escutar.