Um trecho de romance de Jander Ruela Pereira
Jander Ruela Pereira, formado em Odontologia em Uberaba MG, em 1979, e autor de Nonô Farol Baixo, Rio Acima, Rio Abaixo (2019, https://loja.tantatinta.com.br/produto/nono-farol-baixo-rio-acima-rio-abaixo/). Foi um dos vencedores do concurso de contos “Meu caso Com um Volkswagen”, concurso cultural pelos 50 anos da Volkswagen no Brasil, e é co-autor do livro Eu amo o Fusca II da Editora Ripress SP
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Um trecho de Nonô Farol Baixo, Rio Acima, Rio Abaixo
Há muito Nonô perdera a chave da porta, numa daquelas noites encharcadas de cachaça em que chegava feito sonâmbulo nas trevas e dormia como pedra solta jogada sobre a cama, num leito tosco; ali delineava seus sonhos no sono da hora que restava ainda à noite.
Naquele lugar de atmosfera festiva ele jurou passar seus últimos dias, pois ali não podia dizer “Nonô não tem onde cair morto”.
Da janela do seu quarto entrava, pelo longo corredor do cortiço um fino raio de luz. As linhas que a luz do sol formavam pelo meio das frestas desenhando uma poeira fina que boiava quase faceira nesses fachos de claridade que permeiam o ambiente, penetrando pela única janela tosca do seu quarto, entrando pelo corredor do cortiço os gritos da gurizada em algazarra pela rua estreita, os gritos se ampliam dilacerando o ouvido, o choro das crianças batendo a colher em pratos vazios, famintas em seus conflitos, uma mixórdia de ruídos onde se misturam gemidos de dor e prazer, numa só sinfonia, meninos jogando bolinhas de gude, outros soltando pipas cobrindo o céu de pandorgas coloridas incessantes esvoaçando como almas penadas na noite oculta em segredos maliciosos.
Além das casas geminadas, ruas estreitas, água fedorenta escorrendo pelo canto da calçada esburacada e bueiros entupidos de entulhos, ratos passeavam pestilentos sem serem incomodados e, na parede, o curimpampam, uma espécie de lagartixa, caçava mosquitos com voracidade.
O muquifo era um lugar de gente alegre, que recebia com calor e solidariedade, onde o olfato captava no ar um cheiro que misturava perfume barato com desodorante vencido em axilas mal servidas, além do perfume exalado das mangueiras carregadas. Numa das casas, na parede de adobe, um retrato restaurava a respeitabilidade do patriarca ostentando com galhardia duas esposas, uma de cada lado.
O velho baú guardava a roupa de rezar para São Benedito, com forte aroma de naftalina que protegia o guardado; além disso, a melhor roupa e as joias falsas que juntas comungavam na festa do santo.
Nessas ocasiões Nonô se transformava: era outro homem. Sábio, distribuía alegria pelas ruas da cidade em busca da esmola para a grande festa do santo padroeiro São Benedito.
Incorporava o andarilho que percorria as ruas, parando em cada casa, recebido com festa, chá com bolo de arroz e de queijo também. Os fiéis esperavam ansiosos pela passagem da bandeira ao som de uma pequena banda e muitos fogos; ali amarravam seu donativo. Os meses que antecediam a festa eram aguardados por Nonô, sempre disponível à romaria que saia da igreja. O ápice da celebração ocorria no mês de junho, quando os devotos pagavam as promessas e participavam alegremente da festa profana.
Nonô andava em compasso com a cultura popular: onde juntava gente, lá estava ele no meio do burburinho, um legítimo “arroz de festa”, presença marcante nas toadas de Cururu e Siriri. Apaixonado, envolvia-se com o som da viola de cocho, escavada em madeira, de onde tiravam um som vibrante nas cordas de tucum, tripa ou linha de pesca; o batuque do mocho era acanhado, no repique do ganzá e na batida alegre do tamboril.
Sussurrava as cantigas baixinho e curtia as alegorias coloridas, apreciando os grupos com mulheres de vestidos rodados, coloridos e estampados, batendo o pé no chão para espantar os maus espíritos, segundo a tradição. A cor da raça era de uma nuance duvidosa, miscigenada na pele do negrinho sarara de olhos verdes, vulgo Biro-Biro; ou negro de cabelo liso, como o Pacal; tinha também o branco rosado, vulgo Murilão; fora o branco de cabelo pixaim – um povo, como diria o sociólogo, com origem na senzala, beirando o fogão a lenha da cozinha.