Um trecho de romance de Luiz Eduardo de Carvalho
Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM, licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Nove de Julho. Foi professor, teatrólogo, jornalista, publicitário, assessor político. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à Literatura.
Obras: O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica) pela Editora Giostri; Retalhos de Sampa (2015 – poesia) pela Editora Giostri; Sessenta e Seis Elos (2016 – romance) pela Fundação Palmares MinC; Xadrez (2019 – romance) pela Editora Patuá.
Prêmios literários: Prêmio Oliveira Silveira da Fundação Palmares – MinC, em 2015, com o romance Sessenta e Seis Elos (premiado e publicado); Concurso de Poesia de Águas da Divisa MG no 32º FESTIVALE – MinC, em 2015, com o poema Conta-gotas (1° colocado, premiado); Concurso Nacional de Literatura – Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2016, com o romance Xadrez (premiado); Prêmio de Incentivo à Publicação Literária do Ministério da Cultura / Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural / Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas – 100 Anos da Semana de Arte Moderna de 1922 – MinC 2018, com a peça teatral Evoé, 22! (5º colocado, premiado).
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♙e4
São Paulo, 22 de outubro de 1977.
Ao ilustríssimo senhor,
Joel Russo,
Foi por intermédio do senhor Agostinho Matos que tomei conhecimento do clube de xadrez por correspondência. Bastou-me breve consulta e logo me indicou o teu nome como um opositor que se equipara ao nível do meu jogo, pelo pouco que dele se sabe.
Exatamente por configurar-se uma aposta contra a ansiedade é que aceito este estranho desafio: meses de cartas para lá e para cá, intermediadas pelos mais estranhos eventos a atrasá-las, serão a conta do exército inimigo a personificar todo o plantel de minha ansiedade. Assim, quiçá, ela poderá depositar-se e asserenar-se no tocante à espera do consecutivo lance! Pareceu-me deliciosa a perspectiva. O que achas?
Em conformidade com o estatuto do clube, aquele que oferece o convite à peleja tem a primazia de jogar com as brancas e, agregado ao convite, desvendar o primeiro lance a fim de que se dê, conforme o aceite do adversário, o início de uma estranha fraternidade que, com o curso natural da disputa, trará à luz, a despeito de nossas máscaras, um pouco de nossas essências tão conservadas do olhar alheio, nidificadas em estranha solidão que, de tão inquebrantável, recorrermos ao artifício desse clube excêntrico que nos obriga, a cada lance, tecer comentários que transcendam o tabuleiro, à guisa de construirmos amizades, mesmo que à distância. Não é de se estranhar tal perspectiva vinda da dita fraternidade que se encarrega de espelhar pelo mundo as mazelas particulares de cada universo individual com a justificativa de mitigarmos nossas perdas e dores no reconhecimento do sofrimento alheio! Vejamos no que isso poderá resultar! Por hora, não fio, nem desconfio!
Ainda conforme o protocolo recomenda, falta apresentar-me: sou Emanuel Lino Torres, tenho sessenta e três anos e sou natural do Porto, migrei ao Brasil há mais de um ano, moro em São Paulo, de onde escrevo.
Meu lance de abertura é e4.
Saudações desde cá,
Emanuel
♟c5
Fortaleza, 14 de novembro de 1977.
Senhor Emanuel Torres,
Foi também o bondoso Agostinho, com quem disputei uma partida entusiasmante em um hotel, quando de passagem pela minha cidade natal, que me indicou o clube. Ele afirmou que terei em você um oponente sagaz que proporcionará um embate emocionante. Confesso que já mantenho outras duas partidas em andamento, mas, caso não desagrade, terei prazer em iniciar mais uma contra você. Tentarei ser pontual nas respostas desde esta primeira com o lance c5.
Começa a marcha dos peões. Lançar os primeiros negrinhos à linha de frente, como buchas de canhões, traz-me um certo remorso histórico, mas é o recurso que este jogo exige, uma vez que foi criado para defender o rei. Sejamos então absolutistas e imperialistas: que marchem os peões ao sacrifício e que o rei oposto seja capturado! Bom jogo para nós!
Ah sim, tenho trinta e quatro anos, nasci no Brasil e encontro-me na detenção em Fortaleza, cumprindo penas por duplo homicídio qualificado que somadas deixam-me em prisão perpétua. Matei meu ex-sócio e minha ex-esposa quando ainda eram meu sócio e minha esposa! Explodi os dois na lancha dele, enquanto me traiam sobre parte da fortuna que ele desviava e roubava de mim! Não tenho remorso, apenas raiva de ter sido descoberto! Já estou na gaiola há oito anos, agora só falta o resto da vida, assim, no que depender de mim, não precisa ter pressa em responder a jogada, pois por aqui não há ansiedade. Não espero por nada!
Cordialmente,
Joel Russo