Um trecho de romance de Maya Falks
Maya Falks nasceu Márcia, no dia mais frio de 1982. Começou a criar histórias aos 3 anos, ditando as narrativas à mãe. Escreveu seu primeiro romance aos 7 anos, o segundo aos 10 e a primeira antologia poética aos 14, nenhum deles publicados. Atualmente Maya é publicitária, jornalista e estudante de Letras, além de autora dos livros Depois de tudo, Versos e outras insanidades, Histórias de minha morte, Poemas para ler no front e Santuári. Também é resenhista e idealizadora do projeto Bibliofilia Cotidiana e prestadora de serviços no Escritório Literário, onde trabalha com leitura crítica, resenha, release, textos personalizados e ministra oficinas. Santuário, seu mais novo romance, será lançado nesta quarta-feira, dia 29 de julho, às 20h (horário de Brasília) na página Macabéa Edições.
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Sobre Santuário
Quinto livro da gaúcha Maya Falks tem cidade como protagonista e mescla delicadeza com temas duros. Mazelas sociais são um soco na boca do estômago do leitor.
Situações de pobreza extrema, violência masculina, prostituição, feminicídio e corrupção estão em Santuário – uma pequena cidade de interior, de um lugar qualquer e esquecido do Brasil, e que dá nome ao quinto livro da premiada escritora gaúcha, publicitária e jornalista Maya Falks. A obra chega no segundo semestre de 2020 pela Macabéa Edições e reforça a resistência do mercado editorial a momentos desafiadores, como o da pandemia.
São 20 contos que, reunidos, transformam-se em um romance narrado por várias vozes, nenhuma delas plenamente confiável ou comprometida com a realidade. Ao longo da história, a própria voz da cidade se repete, sendo responsável por espalhar casos e lendas que nem sempre têm um desfecho.
“Uma cidade é feita por muitas pessoas que são diferentes e enxergam a vida de formas diferentes. Comecei a obra como um livro de contos justamente para dar a essas pessoas sua própria voz ou uma voz que falasse diretamente sobre elas. Tornou-se romance pela coesão das ideias, porque não é possível separar as pessoas das influências do meio onde vivem.” explica a autora que escreveu Santuário no início de 2019, após passar um ano cuidando de uma depressão.
As temáticas que amarram os contos do livro oscilam entre a morbidez e o alívio cômico, com o objetivo de trazer à tona a sensibilidade do sofrimento humano mesclada a momentos surreais e engraçados. Conduzido pelo realismo mágico, Santuário se encontra entre caminhos: apresenta-se doce, catártico, abordando com delicadeza temas duros, lançando mão da magia na fé – católica e afro-brasileira –, na crença no que não se pode explicar. Há magia nas lendas, na fuga que alguns chamam de demência e outros podem chamar de ressignificação, por exemplo. Em Santuário, estão as histórias, que se sustentam sozinhas, mas que, reunidas, revelam o retrato maior de tantos lugares esquecidos neste Brasil.
Ao abordar temas dramáticos e já amplamente explorados na literatura, Maya tem o cuidado de evitar o apelo sensacionalista e autopiedoso que tais assuntos podem provocar, costurando a narrativa de maneira leve e despretensiosa. O enfoque nas mazelas sociais de Santuário funciona como um golpe no estômago do leitor. A cidade não é apenas o cenário dos acontecimentos, mas o personagem central da narrativa.
“Infelizmente estamos muito longe de resolver os problemas sociais que custam vidas e nosso próprio desenvolvimento como nação, e isso faz com que esses temas sejam sempre atuais e necessários”, declara a autora.
O Brasil de Santuário não é o Brasil visto nos cartões-postais, mas o que é posto para debaixo do tapete. Segundo Maya, a inspiração para criar a cidade-tema veio das novelas a que assistia quando criança e se passavam em cidades interioranas. A escritora resgata figuras clássicas dessas ambientações, como as beatas, os políticos corruptos, as fofoqueiras, as mocinhas apaixonadas, os amores impossíveis, as violências mantidas ocultas e os causos inusitados.
As ilustrações do livro são de Maya Falks e complementam a história, estabelecendo diálogo entre as subjetividades individuais e coletivas, tecendo os fios dos eventos e, segundo ela, trazendo outras perspectivas e cenas do cotidiano dos habitantes. “Embarquei nos desenhos como estratégia terapêutica para lidar com a depressão. Neste processo, imaginei a região da igreja de Santuário”, diz, acreditando que seus desenhos ampliam a experiência do leitor na visita pela cidade.
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Era uma vez, em Santuário
O imaginário popular é, por si só, povoado por mil histórias que vão desde a verdade pura e simples ao realismo fantástico, como a moça que derrete de tanto chorar ou o santo pendurado que garante casamento. Toda cidade pequena, interiorana, tem suas próprias lendas, histórias, figuras que permanecem nesse imaginário mesmo que ganhem roupagens completamente novas conforme vão passando as gerações.
Assim nascem as lendas.
Santuário não é mística por si só, é apenas uma cidade como milhares de outras, onde tudo gira em torno da igreja (católica) e sua festa maior. É uma cidade com tantos personagens quanto permite esse imaginário, mesmo que nem todas as histórias possíveis sejam contadas no livro que leva seu nome.
Simplesmente porque as histórias humanas não se esgotam, não encontram um fim. Atrás de cada porta, cada janela, parede, jazigo, olhar, tem uma, tem dezenas de histórias que podem ser contadas por dias e dias, ou páginas e mais páginas.
Não há de fato limites para a experiência humana, para a complexidade de ser gente em um contexto rural ou urbano influenciado por tantas formas diferentes de ver e viver a vida. E a vida é o tempero de qualquer história, mesmo que tenha sido findada, afinal, um dia ela habitou também as lendas que serão contadas.
Santuário não é uma cidade real, mas realista em tantas formas que se pode dizer que o país – quiçá o mundo – tem mais “Santuários” do que se pode imaginar. Suas ruas irregulares comportam toda gama de caráteres, do mais inocente ao mais covarde, das situações corriqueiras do cotidiano até os mais avassaladores choques.
Em Santuário tudo pode acontecer porque tudo pode acontecer em qualquer lugar. Santuário não é exatamente sobre uma cidade de interior, minúscula, cheia de pequenos ou grandes problemas que uma cidade desse porte carrega; Santuário é sobre pessoas.
Pessoas. Nessa cidade imaginária, são elas que vivem e contam as histórias. Nessas ruas se ocultam os mesmos segredos e paixões que encontramos nas esquinas de qualquer lugar. Humanos são humanos independente de seu local de nascimento. Humanos são humanos independente se feitos de carne ou de papel.
Os habitantes dessa cidade que se apresenta nascem e morrem na ponta do lápis, ou no jato de tinta, mas toda sua complexidade é integralmente baseada em fatos reais. As dores, aventuras, desventuras e amores que vivem os santuarenses já fizeram parte da sua vida, ou de alguém que você conhece, ou de alguém que você já ouviu falar.
Santuário é o retrato e o reflexo de uma realidade que pode se apresentar em qualquer lugar, mesmo que traga em tantos pontos um toque de mágica. Essa cidade, que nasceu da imaginação de uma pessoa, pode se tornar o lar de milhares de outras.
Venha, Santuário te recebe de portas abertas.
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Nos idos de Santuário
Lá nos idos de guaraná com rolha, em uma pequena casa no interior do interior da interiorana cidade de Santuário, Aristeu reuniu seus três guris para uma conversa séria. Pôncio, o mais velho, veio carregando pela orelha o mais novo, Leôncio, enquanto o do meio, Renato, demorava a se juntar aos demais no sofá puído da casa de um mísero cômodo entre as plantações de milho.
Da porta do casebre, Justina observava a cena com Paulina agarrada às pernas e de cara amarrada por não ter sido chamada para a conversa. Aristeu se acomodou na cadeira de palha e, sem tirar o cigarro da boca, começou o assunto.
‒ Eu mais a mãe de vocês trabalhamo de sol a sol pra garantir que nossos filho seja quarqué coisa de bom na vida. E, como é nós que acordamo cos galo, é nós que escolheu as profissão que cês vai seguir.
Os três garotos, de doze, onze e oito anos, se olhavam assustados, enquanto Paulina, com nove, já começava a bater as tamancas; ela sabia que sobrara para ela o tal do “bom casamento”, que sempre terminava com uma mulher envelhecida cheia de filhos esperando o marido voltar da casa da amante.
‒ As nossa decisão são esta: queremo um moleque dotô, um moleque engenheiro e um moleque que nos una com o Todo Poderoso.
‒ Um político, papai? – questionou Renato.
‒ Não, sua besta, um padre.
Pôncio gargalhou, Leôncio se retraiu.
‒ Vamo pela ordem das idade. Pôncio, o que cê escolhe, meu filho?
‒ Eu vou sê dotô, papai, vô se rico e casá com uma mulher dessas de TV!
‒ Boa escolha, moleque. E você, Renato?
‒ Sê padre é que não, cruz em credo. Vô sê engenheiro então. – O pai sorriu com a decisão.
Já não havia o que fazer: Leôncio não tinha nenhuma opção além do seminário e do voto de castidade – que, segundo seu irmão Pôncio, era a pior coisa que poderia acontecer com um homem macho.
‒ Mas que orgulho, meu amado Leôncio! – comentou Justina, sem se mover, mesmo percebendo que o garoto se encolhia no sofá. O pai sorria em silêncio; estava satisfeito porque achava mesmo que o mais novo era o único que ainda tinha salvação: os maiores eram bem precoces na arte de vigiar as meninas dos casebres vizinhos.
Leôncio resmungou:
– Quero não, mãe… Deixa eu ser outra coisa, pai…
‒ Rá, se lascou! – gritou Pôncio, enquanto gargalhava e corria ao redor do sofá. – O Leôncio vai morrer vir-gem! O Leôncio nunca vai comer ninguém! – cantarolou.
Com um tabefe do lado da orelha, Aristeu encerrou a gritaria de Pôncio.
‒ Tome tento, moleque, que linguajar horroroso é esse? Respeita pelo menos tua mãe e tua irmã!
‒ Vixe, pai, Paulina é mais esperta que nós três junto. Já até mostrou as calcinha pros meninos da entrada de Santuário! – acusou Renato. Aristeu imediatamente adquiriu uma coloração roxa de quem parecia mais estar sendo sufocado.
‒ PAULINA…!?
A menina deu de ombros. Não achou que devia respeito ao homem que escolhera profissão para os seus irmãos e a deixara de fora.
‒ Pois foi que Renato e Pôncio iam apanhar dos moleque e eu troquei a vida deles por mostrar um tantinho da calcinha.
‒ Nunca mais, Paulina, nunca mais pense em mostrar quarqué coisa pra homi nenhum que não seja seu marido! Não dá pra ter uma puta na mesma família de um padre! – Leôncio desatou a chorar.
‒ Pois a mim parece que Leôncio não qué sê padre, não, pai. – Renato e Pôncio arregalaram os olhos com a astúcia da irmã.
‒ Isso significa que eu devia te deixar ser puta?! – vociferou Aristeu, partindo para cima da menina, que não se movia nem mudava a expressão do rosto.
‒ Sei não, papai. Mas cê devia deixar Leôncio sê o que ele qué, ara.
Aristeu, já se cuspindo todo, tomado de raiva da filha precoce, encerrou o assunto aos berros:
– Pois já chega! Não vô aceitá filha puta. Não vô!
Naquela noite, Paulina ficou de castigo enquanto Aristeu repetia, aos resmungos, que não aceitaria filha puta jamais. Leôncio só dormiu depois de chorar toda a água do corpo.
Na manhã seguinte, com as marcas da cinta do pai, Paulina se aproximou de mansinho da mãe e perguntou ao pé do ouvido:
‒ Mamãe, o que é que uma puta faz?
Thiago
LINDeza!