Um trecho de romance de Rosângela Vieira Rocha
Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG, e mora em Brasília desde 1968. É jornalista, advogada, Mestre em Comunicação, escritora e professora aposentada da Faculdade de Comunicação da UnB. Tem 13 livros publicados, 6 para adultos e 7 infantojuvenis. É contista e romancista. Seu 13º livro e 5º romance, Nenhum espelho reflete seu rosto, será lançado essa semana pela editora Arribaçã, da PB. Ganhadora de vários prêmios literários nacionais e regionais, colabora nas revistas culturais e literárias digitais Flor de Dendê e Germina. Participou de várias antologias de contos, na qual se destaca Mais trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, org. por Luiz Ruffato, ed. Record. Atualmente, ministra palestras e oficinas literárias.
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Trecho do romance Nenhum espelho reflete seu rosto
Fazia um esforço enorme para realizar as tarefas cotidianas, pois vivia tonta de sono, mesmo assim tomada por uma euforia muito semelhante às descrições que já li e ouvi sobre os efeitos de certas drogas. Nunca experimentei nenhuma, a não ser o cigarro, mas imagino que meu cérebro liberava substâncias bastante similares, naquele período. Eu era inundada pela dopamina e pela oxitocina, como vim a saber depois. Lembro-me bem da excitação mental, sensual e sexual que me assolavam. Em todos os níveis imagináveis, eu tinha sido tomada por uma força desconhecida muito forte, de natureza arquetípica, talvez, uma espécie de possessão, um grude, uma liga, um ímã. Não era prazer, e sim uma totalizante sensação de êxtase, como se vivesse em um cio que parecia não ter fim.
Atendia aos clientes escondendo a minha agitação, fingia estar perfeitamente senhora de mim; controlava-me diante da equipe da joalheria. Evitava os olhares desconfiados de Sebastião, pois havia decidido não falar de Ivan a ninguém, pelo menos naquele período dourado. Eu não podia falar e nem mesmo saberia descrever a natureza daquelas emoções. Não era uma paixão comum, se é que existem paixões comuns. Era um sentimento inaugural, a descoberta do par, daquele que parecia destinado a mim desde tempos imemoriais.
Sentia uma alegria, um desassossego, um frenesi sem precedentes, como se meu cérebro gerasse opioides ininterruptamente. Comia pouquíssimo, não havia espaço nem sequer para pensar em comida. Esquecia-me de tomar café da manhã, de almoçar. Na joalheria, acompanhava os funcionários ao restaurante costumeiro, mas o fazia por força do hábito e para não despertar suspeitas. Não sentia fome, não tinha sede, esquecia-me até mesmo de ir ao banheiro.
Às vezes Ivan variava os horários dos telefonemas. Eu pensava que fosse uma coincidência, algo pontual, mas mesmo assim ficava agoniada, perguntando-me o que poderia ter ocorrido. A aflição ia aumentando e só acabava quando finalmente – na minha contagem interna, um século depois – ele telefonava. Percebendo o tom aliviado da minha voz, ele fazia um arremedo, um rascunho de justificativa, dizendo, em tom casual, que tinha ido ao supermercado, à mercearia, à padaria, a qualquer lugar prosaico e sem importância. Mas sob aquele ar indiferente dava para perceber que tinha ficado absolutamente deslumbrado com a reação que provocara. Minha satisfação era tão grande – sabendo que nada de mal tinha acontecido – que eu não tocava mais no assunto, deixava por menos, só queria me deleitar com a sua presença, ainda que virtual.
Hoje estou certa de que tudo era feito propositalmente. A sedução de Ivan era calculada, detalhista e fria. Para ele, seduzir não bastava, o que almejava era que sua “presa” ficasse adicta de suas atenções, de suas mensagens, de seus telefonemas. Era como se ele incorporasse uma droga muito potente, uma super cocaína pensante e com vontade própria, que se mostrava, se oferecia e depois se ocultava um pouquinho. Fascinava-o perceber o aumento da dependência e a consolidação do vício na pessoa que tinha escolhido como sua seguidora. Ele o fazia de maneira consciente e requintada. Não tinha nada a ver com sentimentos, com amor, ternura ou amizade. Uma questão de poder, apenas.
Se alguém me dissesse na época o que lhe conto agora, doutor, eu não ouviria nem sequer uma sílaba. Repito que eu parecia alguém que passava pelos estágios iniciais de um processo de zumbificação. O senhor já leu sobre como e por que se fazem zumbis no Haiti? Dos interesses econômicos que existem por trás da transformação de seres humanos em desmemoriados errantes, escravos que vagam e não se lembram de nada relativo às suas vidas anteriores? Não se trata de uma brincadeira, é algo muito sério, assunto da sociologia e da antropologia, que encontra sentido na formação histórica da sociedade haitiana.
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A rodocrosita é a pedra do amor, da compaixão e do pacifismo. Para os terapeutas que trabalham com cristais, ela tem o poder de curar o chacra do coração, pois representa o ato de dar e receber. Conhecida também como rosa inca, sua coloração vai do vermelho ao amarelo. É utilizada no tratamento de várias doenças, como distúrbios alimentares, problemas respiratórios, estomacais, no fígado e nos rins. Sobretudo, ela ajuda a ver a realidade, quando se está entorpecido e cego pelo excesso ou falta de amor. Representa a generosidade e a aceitação.
Além dos aspectos estéticos, estou interessada nos poderes de cura das gemas e quero que a coleção reflita isso. Tornei-me menos ansiosa depois de experimentar a terapia com cristais. Tem gente que não gosta da rodocrosita, por sua falta de brilho. Mas trabalhar com gemas é lidar com a diversidade, com a profusão de texturas e cores. O lápis-lazúli, assim como a malaquite, não brilha e fica belíssimo combinado ao ouro ou à prata.
No Museu Hermitage, em São Petersburgo, há colunas inteiramente revestidas de malaquite, puro deslumbramento. Nas peças milenares, as gemas opacas foram largamente utilizadas, com resultados surpreendentes. Até mesmo por não brilharem, requerem uma lapidação perfeita, do tipo cabochão.
Escrevi demais ontem e não consegui dormir direito. Às vezes me arrependo do acordo feito com o Dr. Jorge. Penso no meu esforço, no número de horas dedicado a essa correspondência quase que diária e fico meio desanimada. Não deixa de ser uma oportunidade de passar o namoro com Ivan a limpo, mas isso agora é o de menos. Ele nada comentou sobre sua paciente e achei de mau gosto perguntar. Provavelmente não reagiu ao tratamento ainda.
Como não conseguia dormir, pois a raiva que ainda sinto de Ivan foi aumentando madrugada adentro, resolvi fazer os primeiros esboços da gargantilha e da pulseira de rodocrositas. Ainda não decidi se vou usar ouro ou prata. Nas viagens à Argentina, vi combinações magníficas, a maioria com prata. Prefiro que a pulseira não seja inteiriça, pois geralmente machuca os braços. Estou ensaiando formas com grandes placas, que deem mobilidade e não dificultem os movimentos. Já a gargantilha eu imagino vistosa, utilizando pedras retangulares de um rosa mais claro, de tamanho razoável, nem pequenas nem tampouco grandes, para não darem a impressão de que encurtam o pescoço, mescladas com pedras de ônix.
Usado na antiguidade, o ônix negro ajuda a estabelecer o equilíbrio entre o Yin e o Yang. É o quartzo da lucidez, que protege contra sortilégios, evita a perda de energia e ajuda as pessoas a dizerem não com tranquilidade e equilíbrio, conectando-as com a sua própria força. Tem a vantagem de ser encontrado no país, o que o torna mais acessível. Os antigos acreditavam que os padrões internos da pedra formam uma figura que conta uma história ou transmite um ensinamento. Essa história é relacionada à vida terrena, enquanto a Pedra da Lua diz respeito a temas espirituais.
A combinação da rodocrosita com o ônix vai além dos motivos estéticos. Pretendo fazer uma joia bonita e poderosa. Um autêntico amuleto para as mulheres que a usarem.
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>>>E-mail 8>>>
Desde que nos conhecemos, Ivan falou muito a respeito de um amigo de infância, Norberto, de quem dizia gostar como de um irmão (pelo que me disse, tem apenas um irmão, com quem não fala há anos). Logo depois da minha chegada, antes de iniciarmos os passeios turísticos pela cidade, Ivan convidou Norberto para almoçar em casa, preparando-lhe seu prato predileto.
De aparência um pouco mais jovem, Norberto é bastante simpático, falante, bonachão, extrovertido, bem diferente do amigo. Tomou várias taças de vinho e conversou horas. Curiosamente, Ivan ficou sentado no computador, de costas para nós dois, pontuando a conversa de vez em quando, mas nos deixando falar à vontade.
Estranhei um pouco o comportamento de Ivan, que sempre preferiu ser protagonista, e fiquei intrigada com a natureza do relacionamento dos dois. Eles foram sócios em uma pequena empresa de informática, tempos atrás. Norberto é casado há quase quarenta anos com a mesma mulher, tem filhos e netos. Já trabalhou no Brasil, onde morou sozinho, sem a família, durante dois ou três anos. Elogiou o país, dizendo-se saudoso, e contou histórias.
Um pouco antes, no almoço, Ivan tinha feito questão de lhe falar da joalheria, enfatizando o meu valor por ter montado o próprio negócio, exagerando as minhas qualidades, o que me deixou meio sem graça. Parecia estar orgulhoso de mim e querendo que Norberto me admirasse. Este me fez perguntas sobre o funcionamento da empresa, mostrou-se curioso quanto ao tipo de joias com que trabalho e com as peças da coleção. Embora interessado, não foi indiscreto e nada…