Um trecho de romance de Stéfanie Sande
Stéfanie Sande é escritora, mestre e doutoranda em escrita criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
“Virgínia”, de Stéfanie Sande, é uma história de amor. Trata-se de uma novela dividida em quatro partes sobre se apaixonar em uma situação atípica, onde duas mulheres, Virgínia e Ariel, navegam pelo tumulto de seus sentimentos uma pela outra. Está disponível em e-book na Amazon pelo link: amzn.to/3nDpCTl
Os textos abaixo são os três primeiros capítulos de “Virgínia”.
***
I
Escrevi uma carta de amor para Virgínia.
II
O sinal de WI-FI não cooperava. Nervosa com a possibilidade de perder minha primeira sessão de terapia em cinco anos, batia os pés pela casa, amaldiçoando a audácia do modem em oscilar.
— Para quê esse drama, Ariel? — minha mãe perguntou. Assistia ao jornal no sofá da sala. As notícias repetiam-se: pandemia, mortes e nada de uma vacina. — Pega o cabo e liga no computador. Não sabe resolver os problemas, não?
— Não sei — eu disse, cerrando os dentes para não gritar. — Que cabo?
Mamãe suspirou. Pensei que fosse, mais uma vez, questionar como eu tinha chegado num doutorado com aquela minha incompetência toda. Ao invés disso, abriu uma gaveta do rack, de onde tirou um extenso fio azul. Ah, esse cabo. Ao me entregar, balançou a cabeça.
— Esse negócio de terapia online — ela disse pela terceira vez naquela semana. — Eu não sei, não, viu… será que funciona mesmo?
— E tem outro jeito de fazer terapia agora? — eu disse, ligando uma ponta do cabo no modem e desenrolando o resto enquanto caminhava até o meu quarto. Sentei frente à escrivaninha. Mamãe parou na soleira da porta.
— Será que vai até quando isso?
Chegávamos ao segundo mês da quarentena. Na primeira semana, quando a faculdade suspendeu as aulas “por apenas um mês”, arrisquei-me nos aeroportos para fazer o trajeto Porto Alegre-Cuiabá e ficar perto da família. E se alguém ficasse doente enquanto eu estava longe? E se fechassem os aeroportos? Tive meu primeiro ataque de pânico em meia década.
Semanas depois, as aulas voltaram no modo online e seguiriam assim por tempo indeterminado. Subíamos rápido nas estatísticas: o Brasil estampava manchetes internacionais como o próximo epicentro da pandemia.
— Não sei — eu disse, pensando que a esperança de uma volta à normalidade pendia na tal da vacina. — Fecha a porta, por favor?
— Olá, Ariel — disse a voz no fone de ouvido. A imagem demorou um pouco a aparecer, mas um momento depois, lá estava ela. Não esperava que fosse tão jovem. Devia ter a mesma idade que eu. — Meu nome é Marcela.
Apresentou-se com mais detalhes, informando como seriam nossas sessões e perguntando se o arranjo semanal servia para mim. Acenei, aliviada de o programa não ter travado nenhuma vez até o momento. Então, a pergunta fatídica: por que eu busquei a terapia? E, é claro, o que eu esperava dela?
Enrolei com a resposta. Mencionei o ataque de pânico e repeti que era impossível ficar normal no meio de uma pandemia. Verdade seja dita: minha rotina continuava a mesma, incluindo aulas e obrigações acadêmicas. Até exercícios físicos eu fazia. A diferença é que não saía de casa. Dez minutos passaram até que reuni coragem para mencionar Virgínia.
III
Sexta-feira, 14 de fevereiro.
Era meu último final de semana em Cuiabá. Jantava com amigos no meu café favorito quando uma figura familiar entrou acompanhada de um desconhecido. Virgínia. O Metade Cheio estava lotado, mas havia um vão entre as pessoas por onde ela encontrou meu olhar e sorriu com uma expressão surpresa. Encarei o chão por um momento e, levantando, disse ao grupo que voltaria logo.
Antes de me jogar no abraço, reparei no seu aspecto. Não a via há mais de um ano. Um vestido azul celeste estampado com margaridas caia até o joelho. Eram margaridas? Flores brancas. Uma profusão de colares e pochete na cintura. Virgínia transita na linha entre hipster e hippie. Para mim, a estética good vibes era uma tentativa de amenizar o que ela de fato gritava: neurose. Lembrei do dia em que ficamos a sós no carro e, em um tom sorumbático, ela contou do término com a Larissa. A competição é acirrada, mas talvez ela me vença no drama.
Depois de absorver aquela figura que eu não via há tanto tempo, deixei os braços dela me envolverem, mergulhando o rosto no seu pescoço. Ela não me soltou até que eu desse um passo para trás.
— Esse é o Gustavo — ela disse, apontando para o amigo, que cumprimentei com um beijo rápido na bochecha.
Ela então me convidou a sentar. Resgatei minha taça de vinho e sentei. Navegamos pelos assuntos de reintrodução. Digo que estou em Cuiabá desde o natal.
— Tudo isso? — ela disse, fingindo ultraje. — Você chega e não avisa nada.
— Avisar como? Telepatia?
— Sinal de fumaça — Gustavo disse, rindo.
— Só se for.
A Virgínia é péssima com redes sociais. Ou era o que eu achava. Não usa Whatsapp e o Instagram é inativo. Ela então pegou meu celular e adicionou uma conta privada com nome aleatório. Nem sei o que significa. Raposa azul? Não faço ideia. A foto de perfil era um quadro de uma jovem muito parecida com ela, mas que eu não conhecia. Descobri depois ser Portrait of Henriette Sontag (1831), do Paul Delaroche. Agora ambas usávamos o Telegram. O canal de comunicação foi reestabelecido.
O assunto migrou para como ela e o amigo se conheceram. Faculdade de direito, que Virgínia está concluindo. A Virgínia estudar direito é a coisa mais incongruente do universo. Perguntei como ela foi parar nesse curso e ela contou uma longa história. Em nenhum momento disse o porquê. Falamos do meu aniversário recém-feito e de signos. Eu sou de aquário, Virgínia é de escorpião.
— Encontrei uma amiga esses dias e ela me falou de você — Virgínia disse.
— Que amiga?
— A Isabela.
Ah, a Isabela. A mina que eu fiquei na virada do meu aniversário e de novo naquela mesma semana. Ex de uma amiga. Aparentemente, ela e a Virgínia têm laços de infância. Talvez sejam ex. Essa é Cuiabá para você: todos trocaram saliva direta ou indiretamente. Outro detalhe engraçado é que a ex da Virgínia, a Larissa, é melhor amiga da Jéssica, uma outra menina com quem fiquei algumas vezes. E eu conheci a Larissa quando tínhamos 16 anos. Ela agora namora à distância meu melhor amigo. Se você não entendeu esse parágrafo, tudo bem. Cuiabá é assim mesmo.
Fomos para a área externa para que Virgínia pudesse fumar. Relembramos a história de como nos conhecemos.