Um trecho do romance de Juliana Reis
Juliana Reis tem 18 anos de idade, nascida e criada na baixada fluminense do Rio de Janeiro. Seu coração mora na cidade maravilhosa e em tudo que há nela, principalmente, o Colégio Pedro II. Como uma boa libriana, não consegue decidir o que mais gosta de fazer, mas seus hobbies passeiam em tudo o que é arte: Escreve, fotografa, canta e, às vezes, se arrisca a dançar. Ela ama uma boa dança de salão, principalmente se tiver junto de uma boa companhia. Amante de mate com limão na praia de Ipanema e um bom karaokê na Feira de São Cristóvão. Acredita no bem das pessoas, apesar de perder as esperanças de vez em quando. Gostaria que o amor abraçasse todas as pessoas do mundo e que a empatia virasse moda. Falando em amor, esse é o seu vício.
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O trecho abaixo compõe o livro Borboletas Pra Lá e Pra cá
“Eu estava sozinha em um quarto branco. Deitada em uma maca, sem conseguir levantar. A sensação de impotência preenchia meu corpo e eu me debatia. Alguém precisava da minha ajuda e não havia nada que eu pudesse fazer. De repente, eu estava sentada no chão gelado. A maca havia desaparecido. Corri em direção à porta e ao olhar pelo vidro pude ver uma pessoa deitada em outra maca, na sala da frente. Não reconhecia o rosto, mas senti que era alguém conhecido, alguém amado. E que aquela pessoa precisava de mim. A porta, trancada, não abria, apesar dos meus esforços. Depois de tanto empurrar, gritar e chutar, ela finalmente cedeu.
A luz do sol entrava pela janela enquanto meu último alarme tocava. Já eram sete horas da manhã e eu estava mais do que atrasada. Segundo tempo, lá vou eu de novo. Acordei correndo e tentei me arrumar o mais rápido possível. Já havia perdido as contas de quantas vezes tive esse mesmo sonho, e por coincidência, eu sempre acordava do mesmo jeito, no mesmo horário e sem descobrir como o sonho terminaria. É, eu realmente não estava no melhor momento quando o assunto era saúde mental.
Peguei minha mochila, uma banana na cozinha e saí correndo para chegar ao ponto de ônibus a tempo. Cumprimentei o motorista, que sempre me salvava quando eu saía atrasada de casa, e tivemos uma curta conversa.
– Atrasada de novo, não é mesmo, Laís? – ele ria do meu desespero.
– Que nada! Entro tarde hoje… – eu disse, usando meu clássico tom de mentira, que era péssimo.
– Quase todo dia isso! Vida boa!
Sim, eu tenho um carinho especial com motoristas de ônibus. Não me julguem. É só que eu pego muitos ônibus durante meus dias e – geralmente – nos mesmos horários. E sem querer me gabar, eu sou uma menina muito simpática. Ok, estou me gabando sim… É uma das poucas coisas que aprecio em mim mesma.
O motorista precisaria correr muito para eu conseguir chegar na hora, caso contrário, não daria tempo de entrar. Não que eu fosse perder muita coisa… Seriam só mais algumas faltas de, não sei, muitas. Cochilei um pouco e quando me dei conta já estava na frente da escola.
Céus, essa correria um dia ainda me mata. Ainda estávamos no meio do ano letivo e eu já não tinha forças para mais nada. Não conseguia pensar em muita coisa além da escola e de todos os meus deveres diários. Acho que se aparecesse mais alguma coisa para eu me preocupar, eu explodiria. Sério. E sairiam pedacinhos de Laís Monteiro voando cidade afora.
Parecia que eu estava na escola há horas, mas apenas dois tempos haviam se passado e ainda era hora do intervalo. Saí da sala de aula sem ânimo nenhum e fui recebida por Malu, minha melhor amiga, que começou a pular quando me viu.
– Nem vem com esse ânimo todo pra cima de mim, péssimo dia. – Cortei sua animação assim que me aproximei.
– Credo! – ela exclamou – Bom dia pra você também. Mas eu posso te animar rapidinho… Você já ouviu a novidade?
– Certamente não.
– Amanhã chega uma garota nova no nosso ano. Pois é! Finalmente uma carinha diferente nessa escola. – Malu suspirou – Tomara que ela não seja um pé no saco. E que seja bonita…
– E que não seja hétero. – Completei, já sabendo o que ela iria falar – Mas que louca! No meio da semana? Quer dizer, no meio do mês! Meu deus…
– Sim, no meio do ano. – Ela completou, já sabendo o que eu iria falar. – Mas deve ter um motivo, ninguém em sã consciência faz isso.
E meu celular vibrou. Júlia.
– Oi, amiga – eu disse, enquanto Malu revirava os olhos, porque simplesmente não conseguia aceitar o fato de eu e Júlia continuarmos nos tratando como amigas quando somos o “contato fixo” uma da outra. Ela insiste que é chato e sem graça não ter nenhum romance na nossa relação.
– Topa vir aqui em casa hoje à noite? Meus pais vão sair, e você sabe… – Ela fez uma pausa cínica – eu preciso de ajuda em biologia.
– Claro! – eu soltei um risinho – Biologia. – Repassei todos os meus passos do dia para saber se teria disposição a noite. – É… Ju, posso te dar a resposta mais tarde? É que o dia vai ser meio corrido.
Ela concordou e desliguei o telefone enquanto Malu fazia várias caretas.
– Não sei porque vocês não namoram logo, quanta enrolação. – Ela sempre levantava esse questionamento, no fundo, por puro prazer de me perturbar.
– Eu tenho mesmo que citar todos os motivos de novo?
– Certo, certo – Malu suspirou, se sentando no refeitório, na mesa onde se encontravam todas as meninas. Eu nem reparei que estávamos indo pra lá, de tão desligada que ando.
Meu grupo de amigas não é o que podemos chamar de padrão. Felizmente. Enquanto a maioria das meninas da escola estavam preocupadas em impressionar os garotos, nós tínhamos outras prioridades. Felizmente. Até porque “garotos” sempre era o último assunto da minha lista.
Nossas conversas sempre eram meio viajadas, mas hoje, especificamente, quando comecei a prestar atenção no que elas estavam falando, adivinhem só qual o era o tema? Isso mesmo, a menina nova. Geralmente não é assim. Nós não fofocamos só sobre meninas todos os dias. É que a maioria das minhas amigas são solteiras e… gostam muito de meninas. Ok, talvez esse seja sim o foco principal delas, tenho que admitir. Com exceção de Luiza, que era a menos interessada no assunto, porque no momento, ela é muito – e muito é quase um eufemismo – apaixonada. Não a julgo, Ana é mesmo uma menina incrível.
Papo vai, papo vem e no fim das contas todas estavam animadíssimas para descobrir em quais aulas a tal menina ficaria e quem seria a primeira a conquistá-la. Ou a ser conquistada. Minha cabeça só conseguia pensar quando a semana finalmente acabaria para eu poder descansar.
– Laís? – Ester me chamou, estalando os dedos na minha frente – Acorda, amiga! Vamos ao cinema hoje à tarde?
– Vocês nunca lembram mesmo, né? – eu ri, já sem esperança alguma – Eu trabalho no cinema, gente. Não posso largar meu turno pra assistir filme…
– Pelo menos você pode descolar umas pipocas de graça pra gente… – Raissa brincou com cara de sapeca.
E o sinal tocou.
***
Estava pensativa, questionando se valia ou não a pena ir na casa de Júlia à noite. Eu tinha algumas coisas para arrumar em casa, e vamos combinar, nós não temos mais a mesma química do começo.
Claro! Olha a forma que vocês se tratam.
Malu entrou na minha cabeça por uns instantes. Mas, talvez ela estivesse certa. Quem sabe não está na hora de dar um segundo passo.
Fui tirada dos meus devaneios pela voz de Raissa:
– Boa tarde, senhorita! Eu gostaria de sete baldes grande de pipoca salgada. E quatro médios de pipoca doce. E quatro ‘refris’ grandes. E uma barra de chocolate. Hum… – ela colocou a mão no queixo, procurando por mais alguma coisa nas prateleiras atrás de mim. – Acho que só! De graça, por favor.
Eu ri da forma que ela estava agindo com naturalidade.
– Ah, mas de graça é pedir demais. Quero algo em troca. – Olhei pro alto pensando. – Vai ter que me dar um beijinho, pelo menos. – Eu provoquei, e Raissa fez cara de nojo enquanto as meninas riam dela. Ela era a nossa hétero de estimação.
– Pelo menos seu humor melhorou! – Ester observou – Agora sério, vamos querer só uma pipoca e um refrigerante. Ninguém tá com dinheiro sobrando aqui não.
– E eu fico sem beijinho? – fiz manha, rindo.
Entreguei o que elas queriam e fui limpar a pipoqueira. Hoje só eu estava trabalhando na lanchonete do cinema. Quartas-feiras são dias de pouco movimento no shopping, então meus colegas de trabalho acabam tirando folga.
– Oi…
– Dessa vez vai custar bem mais do que um beijo… – me virei, rindo. Mas não. Não era nenhuma delas agora. – Meu deus! – coloquei minha mão na boca – Me perdoa! Desculpa. Eu achei que fosse uma das minhas amigas. Meu deus, que vergonha. – Tapei meu rosto, que a essa altura, estava fervendo.
– Eu só queria uma pipoca… – ela sorriu. E que sorriso. – E eu tenho dinheiro. Juro. – Balançou uma nota de 20 reais no ar. Certamente, era uma das meninas mais bonitas que eu já vi em 17 anos de existência.
Minha voz custou a sair.
– Certo. – Respirei fundo e fui encher um balde de pipoca pequeno. – Me desculpa mais uma vez. Sério. – Disse, entregando a pipoca para ela. E só aí que me dei conta de que não tinha perguntado o tamanho. – Meu deus. Eu sou uma desastrada. Que tamanho você queria? – eu já estava entrando em desespero, e ela estava se divertindo com minha confusão.
– Era médio, mas vamos fingir que era esse tamanho mesmo pra não ficar mais constrangedor pra você. – Ela pegou a pipoca da minha mão e sorriu torto, me entregando o dinheiro.
– Eu não sei onde está minha cabeça. – Entreguei o troco para ela, e eu juro que a pele do dedo dela era absurdamente hidratada. Não que eu estivesse em posição de reparar esse tipo de coisa.
– Ué, tá bem aí. – Ela apontou para mim com o queixo, já se virando pra ir embora – Ah, e eu não me importaria em pagar do jeito que você propôs. – E foi embora.
Meu rosto inteiro queimou. Eu não tenho dificuldade nenhuma para flertar, mas eu definitivamente não esperava isso. Uma garota linda dessas jogando charme pra mim. Não que eu me achasse feia, ou algo do tipo, mas hoje eu certamente estava acabada. Sabe aquele tipo de pessoa que fica aceitável quando se arruma? Sou eu. O problema é que eu raramente me arrumo.
Ok, tudo bem. Ela não deve relatar isso para o meu gerente, certo? Ou deve? Agora estou desesperada, ótimo. E tudo culpa das minhas amigas idiotas. Sim, culpa delas. Por culpa delas eu vou perder meu emprego e vou ficar com o nome sujo por não ter dinheiro para pagar as contas. Droga. Pelo menos nunca mais vou ver essa menina na vida. Quer dizer, ela não deve frequentar o cinema depois disso, né? Atendimento de péssima qualidade. Já consigo até imaginar as críticas.
Antes que eu me desse conta, o expediente tinha acabado e eu já estava fechando tudo para ir para casa – finalmente – descansar. Quando cheguei fui direto pro banho. Água nem muito quente, nem muito fria, como de costume. Música no último volume.
E eu não me importaria em pagar do jeito que você propôs.
A cena não saía da minha cabeça. Aquela foi a situação mais constrangedora desde que comecei a trabalhar no cinema. E olha que eu trabalho enchendo baldes de pipoca e manteiga. E às vezes a máquina dá problema. Pois é, uma vez tive que ficar duas horas no banho só para tirar toda a manteiga do meu cabelo.
E eu não me importaria em pagar do jeito que você propôs.
A voz dela não saía da minha cabeça, apesar de não conseguir lembrar nada do rosto. Minha memória funciona de uma forma surpreendente. Tudo o que eu lembrava era o fato de ser extremamente agradável olhar pro rosto dela. De uma forma um tanto curiosa.
Saí do banho e caí na cama, morta de sono. Tudo o que eu conseguia fazer era dar umas batidinhas na cama para chamar minha gata, Nina, – clichê, eu sei – para deitar na cama comigo.
E apaguei.”