Uma crônica de André Alves
André Alves (1976, Agudos/ SP) pesquisa sobre relacionamentos e sexualidade desde 2015, mas o gosto pela literatura começou ainda no início da adolescência, quando leu Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. É jornalista com especialização em Antropologia pela UFMT. Criou o site Vamos Falar Sobre Sexo e é autor do livro digital, Esqueça o que te disseram sobre amor & sexo.
Aos seus pés integra o próximo livro de André Alves, Histórias que não contamos para todo mundo, que está em produção.
Contato: andre2255@gmail.com
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Aos seus pés
– Mãe, como que você conheceu o papai?
Aquela pergunta inocente, de uma linda garotinha de 05 anos, filha única do casal, bem no final do jantar pegou a mãe de surpresa. Mas, a resposta era mais doce e inusitada que a criança poderia supor.
– Ah, filha, foi tão bonito… Você sabe que o papai é um amor de pessoa e sempre foi muito romântico comigo, mas no começo era ainda mais… Quer saber como foi? Eu te conto, pois eu amo contar pra todo mundo o nosso lindo início.
Antes de continuar, trocou olhares apaixonados com o marido, coisa que não se vê sempre num casamento que já tinha seis anos.
– Ele entrou na loja em que eu trabalhava, uma ótica lá no centro, que vendia óculos, relógios e alianças… Bem, ele chegou perto de mim e se jogou aos meus pés. Disse que ao passar pela loja viu a mulher da vida dele e que não podia perder o momento. Não foi assim, querido?
– Sim, claro que foi. Filha, desde o primeiro olhar eu sabia que ela era a mulher da minha vida. Entrei e me declarei… Foi meio bobo, confesso, mas agi por instinto… E por sorte ela me deu o telefone e alguns dias depois o primeiro beijo, que selou o nosso destino.
– É, eu fiquei meio envergonhada no início, uma coisa assim, do nada. Seu pai estava tremendo de timidez e até suava um pouco. Eu achei tão fofo que não resisti e dei o telefone. Sorte dele que eu não estava saindo com ninguém. Senão eu não teria dado o número.
– Ai, ai, ai, quero uma história assim pra mim também, papai e mamãe.
– Vai ter, disse o pai, acariciando o cabelo da filha e depois o passando a mão suavemente pelo rosto da esposa até dar um beijo em sua boca, mas não sem antes dizer: – desde o primeiro momento em que a vi, eu sabia que você era, é e será o amor da minha vida.
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Não foi beeeeeemmmmmm, assim, na verdade. Ou antes, muito longe disso, mas a história contada acima se encaixou muito bem para a filha e, secretamente, para um e para o outro, e como eles achavam que tinha acontecido.
Foi numa segunda-feira quando Alessandro entrou na loja e se jogou aos pés de Márcia, mas a história havia começado, de fato, na sexta-feira.
– Droga, droga, droga, que cara mais desgraçado! Que ódio!
Alessandro tinha acabado de tirar o extrato do banco e ver sua conta zerada. Passou meses fazendo um site de muita complexidade para uma empresa. Com isso acabou perdendo clientes, mas achou que valeria a pena, pois o contrato era muito bom e o pagamento daria para viver muitos meses com tranquilidade.
Se apertou como pode, pediu dinheiro a família, aos amigos até não restar mais ninguém a quem não devesse alguma quantia. O desespero fez com que o projeto demorasse mais do que o previsto em ficar pronto, mas, ufa! ficou.
E já contando com o pagamento, deixou o carro na oficina para uma revisão e que buscaria naquela bendita sexta. O dinheiro não era só para pegar o carro, tinha que botar combustível, tinha de comprar comida, precisava pagar a luz, a internet e todas as outras contas do cotidiano e todos aqueles para quem devia.
Mas o dinheiro não caiu na conta. Se acalmou, foi dormir, não sem antes terminar de assistir o final da primeira temporada de Vikings.
No sábado, decidiu ligar para o financeiro da empresa, mas seu celular estava sem créditos. Telefone fixo já não tinha há tempos. Passou o sábado se remoendo e domingo, ao acordar e ver a geladeira vazia, se viu no desespero de encontrar algo para vender rapidamente. Passar fome não dá!
– As alianças! As alianças!! As alianças!!!
Lembrou que nunca se desfez das alianças após o noivado fracassado de quase dois anos. Não queria se desfazer, pois para ele, significava que ele sempre iria amá-la e que jamais se casaria novamente. Mas… O que o medo de passar fome não faz.
Começou a revirar o apartamento procurando aquelas grossas argolas de ouro, pois na época queria ostentar para o mundo o tamanho da sua paixão.
Achou numa caixa de sapatos, cheio de tranqueiras, cabos USB, cartões de créditos vencidos, fotos antigas, um cartão de vale-transporte da diarista que teve que dispensar. Ficou quase tão feliz de ter encontrado o cartão transporte como o par de alianças. Afinal, não tinha dinheiro para pagar o Uber.
Enfim chegou a famosa segunda.
Com o estômago roncando, mas confiante, botou uma roupa bonita e bem passada para não parecer desesperado, andou até o ponto de ônibus e esperou a linha que ia até o centro, onde havia várias lojas que compravam ouro.
Lembrou que há anos que não pegava um coletivo, ficou com dó de despedir dona Suzana, mas agradeceu imensamente por ela ter deixado o cartão.
Passaram um, dois, três ônibus e ele não queria pegar um lotado. O sol já começava a se firmar. Fernando estava com a boca seca e aquele quiosque vendendo salgados estava quase causando delírios de tanta fome.
Enfim, subiu no quarto ônibus.
Mas, ao aproximar o cartão do leitor, uma mensagem com a qual não contava: Saldo insuficiente. Favor realizar recarga.
O motorista informou que ele poderia recarregar o cartão em dinheiro com um dos vendedores que ficam em alguns pontos de ônibus.
Por azar, já era no próximo ponto. Com vergonha, ele desceu rapidamente do ônibus e pôs a se caminhar a pé.
Mais de 15 pontos depois – ou quase quatro quilômetros se passaram – e ele viu o que parecia ser uma miragem: Compra-se Ouro.
Botou a mão direita no bolso da calça, pegou as alianças e foi mostrar ao vendedor.
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– Está tudo bem com o senhor? Uma senhora abanava freneticamente Fernando com uma revista. Ele estava sentado no único banco do local, suando muito.
– O senhor não tomou café hoje?, perguntou.
Não, não tinha tomado café hoje, nem jantado ontem, muito menos almoçado. O café de domingo foram dois pães de forma sem recheio e água. Juntou isso, mais o sol, a caminhada e o desespero por conseguir algum dinheiro, desmaiou. Mas a resposta foi outra.
– Sim, sim, é claro que tomei. É que minha pressão é muito baixa.
Arranjaram um pouco de sal do restaurante ao lado e ele tomou três copos d’água. Mas assim, que viu que melhorou, saiu de fininho e foi embora.
– Que vergonha, que vergonha, que vergonha. Repetia pra si mesmo, seguido de – Que fome, que fome, que fome, pensava enquanto saia da loja.
Depois de subir uma rua por uns 500 metros viu uma Ótica com um adesivo: Compram-se Alianças.
Nem pensou duas vezes, entrou e lá viu sua futura mulher. Embora não tenha sido esse seu pensamento. Ainda muito tonto pela fome, enfiou a mão no bolso da calça e…
Cadê as alianças?
Bateu um desespero, a pressão caiu novamente, pressentiu que estava quase desmaiando, mas dessa vez foi forte o suficiente para sustentar ao menos o joelho esquerdo e não cair de vez.
Ficou uns cinco segundos no chão, com Márcia perguntando o que estava acontecendo. Mil pensamentos passavam pela cabeça de Fernando: raiva, fome, medo de desmaiar, humilhação e uma decisão repentina de deixar tudo isso para trás.
Ao ficar de pé e ver uma jovem linda, de olhar cativante e sorriso encantador, tirou uma audácia que nem sei de onde:
– Desculpe-me, moça. Mas ao passar por aqui, nunca tinha visto tão bela mulher. E num único olhar eu tive a certeza que você é a mulher dos meus sonhos. Queria muito pedir o número do seu celular.
Márcia não sabia se ria, se chamava a polícia ou o hospício. Mas, como Fernando também não era de se jogar fora, optou por uma saída diplomática.
– Que fofo, mas não posso não. Tenho namorado.
Nesse instante, a colega vendedora interveio e a chamou para o canto.
– Tá louca, é? Que namorado? Aquele bostinha que te busca na faculdade de moto? Aquele professor casado que fica com você quando está dando aula na cidade? Aquele seu ex-corno que te pedia desculpas cada vez que você o traia e que você ainda transa com ele quando está com raiva do bostinha de moto? Olha, pode ser uma chance, se não for é só mais um para sua conta. Mas se não quiser, tudo bem, dá meu telefone pra ele. Ninguém precisa ficar sabendo.
Enquanto essa conversa rolava, Fernando se serviu de um café bem açucarado e se sentou no sofá confortável da loja, agradecendo internamente por poder se refazer e evitar novos desmaios.
Márcia, pensou, pensou, pensou, olhou para o cara bonito, mas estranho que suava muito e decidiu dar o telefone. Dela mesmo. Mas avisou: – olha, não posso sair dia de semana, pois estou terminando minha faculdade de administração.
– Mas, já que entrou aqui não quer olhar uns óculos, um relógio, talvez?
– Sim, mas não hoje. Voltarei aqui para te buscar e quem sabe, se o destino ajudar, comprar nossas alianças…
Fernando saiu da loja feliz. Mais feliz por não ter desmaiado novamente do que pelo telefone em si. E mal saiu já encontrou o comprador de ouro andando na rua em sua busca, com suas alianças na mão.
Foi feita uma ótima proposta pelo par, que foi pago em dinheiro. Tanto que enfim ele pode almoçar decentemente e tomar uma coca bem gelada. Pôde buscar o carro na oficina e encher o tanque com um sorriso daqueles: pagou em dinheiro.
E se pôs a comprar algumas coisas para casa, mas ao ver que no mercado fazia recarga de celular, deixou o amaciante, o desinfetante e uma caixa de chocolate e pôs créditos. Afinal, tinha que cobrar o desgraçado que não depositou o seu dinheiro.
Mal tinha ativado seu pacote de dados e recebeu uma mensagem do banco. O dinheiro tinha caído… No sábado. Não precisava ter passado por aquele martírio todo.
Mas algo o fez pensar que foi o encontro com Márcia que mudou tudo. Ela deveria ser mesmo a mulher que ele sempre sonhou. Que precisava se desfazer daquelas alianças para encontrar o verdadeiro amor. Que precisava passar por uma provação para encontrar alguém especial. E que por isso mesmo, ele seria o melhor homem que uma mulher poderia encontrar.
Naquela segundo mesmo ligou para Márcia e o encontro foi marcado para dois dias depois, pois, por sorte, ela não teria aula na quarta.
Perceberam que tinham muita coisa em comum, o mesmo gosto musical, para comida, que riam das mesmas piadas e não gostavam dos mesmos políticos. Márcia sonhava em abrir uma loja de computadores, mas logo viu que uma empresa de tecnologia seria melhor e veio a ser sócia de Fernando, além de esposa. Uniram o conhecimento de informática de um, com o conhecimento em administração e técnicas de vendas da outra.
Namoraram por um ano e decidiram se casar, um pouco antes do previsto na verdade, pois a gravidez apressou as coisas.
Até hoje formam um casal feliz, por essas mentiras que a gente conta, mas que ninguém precisa saber.
Verdades demais acabam com qualquer romantismo!