Uma crônica de Dennis Radünz
Dennis Radünz vive na Ilha de Santa Catarina (Florianópolis), onde dirige a Editora Nave. Publicou os livros de poemas Sonívia (2020), Ossama: último livro (2016 e 2018), Extraviário (2006), Livro de Mercúrio (2001) e Exeus (1996 e 1998) e a antologia das crônicas publicadas no Diário Catarinense, Cidades marinhas: solidões moradas (2009). Prepara para breve o lançamento de seu livro Roça barroca: mundos torrentes, extenso ensaio sobre o livro de poemas Roça barroca, de Josely Vianna Baptista. “Da cor do mar no sol do rosto” integra a série 88.010-500 – crônicas do mundo extrafísico.
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Da cor do mar no sol do rosto
Basta lavar o rosto e – insólito – as mãos na água e a memória involuntária me levam de volta aos sóis de Mato Grosso. Talvez recorde assim aquela estada: o braseiro. Porque a minha primeira visão aérea – no meio da massa de ar seco – foi a de um céu de fumaça, com nuvens mortiças subindo do chão em colunas de torra de terras de gado e de soja. O mato inteiro era a queimada?
Foi ao sul da Amazônia Legal – há seis anos e uma hora a menos de fuso – e o avião descia, se recurvando, e aterrou: “Bosque da Saúde?!”, disse, depressa, ao taxista, e o carro corria a leste, Centro Norte, enquanto eu adivinhava no ritmo das casas o que seria (no tempo em que não havia risco de embolia), mais adiante, um bosque-da-saúde. Relembro que logo andei pela avenida larga e, enquanto edifícios de espelho apareciam do nada, descobri o sol: sol de pele avermelhada sem suor, sol de asfalto às onze horas.
Deveria ter sentido que, na Avenida do CPA, por baixo do Viaduto, o ponto de ônibus preparava meses e meses de uma espera áspera – lockdown. Teria de ter visto que, no canteiro central, o Veículo Leve sobre Trilhos evapora sobre a estrada sem terra que ficou para trás, no fundo do país irremediável. Poderia ter ouvido a viola de cocho, som úmido de harpa, e vivido o pirão no Porto e cumbucas de barro e farofa de banana e ventrechas de pacu, mas não vivi – o passado é também o que não foi?
O que ficou é a mojica de pintado, no Arsenal, e, na rua, uma banca de pequi, enquanto procurava pelo gogó da siriema, porque o taxista foi tão taxativo: “no Gogó da Siriema – fica lá”. Onde, em qual ponto zero, cada cidade fica? Onde uma cidade é? Da palmeira curva como o gogó, a cidade irradia-se, com o povaréu e os revendedores da Praça Ipiranga, onde me recostei, escaldante, na porta do Ganha Tempo.
O dessedentar sei que existe, mas uma variação da língua poderia dicionarizar o substantivo “sedentado”, porque eu ia, levantado nos fêmures, tão sedentado, entre o sedento, o dissidente e o sedentário, a sede nos dentes, na margem esquerda do rio que descende do Rio Paraguai (anos mais tarde cronistas da cidade me disseram que “água não tem galho” e não entendi, mas ainda agora sei que não estive no Gogó da Siriema, estive na sede).
Andei ao redor, tempo livre, e segui na febre por uma ruela ocre de mormaço, levando sobre a planta dos dois pés uma coisa sem sombra, eu a esmo, até que cheguei a uma placa de trânsito que avisava, além, a Cidade Alta e a Orla do Porto. À esquerda, repentinamente, encontrei o pequeno obelisco do Centro Geodésico da América do Sul, à beira da calçada, a quinhentas léguas do mar atlântico, e esse ponto exato (pelo menos provisoriamente, devido à deriva de todo continente) tem gravado no chão, em espécies de moedas, as distâncias da terra: Asunción, 1.084,54 km – Buenos Aires, 2.116,45 km – Santiago, 2.458,56 km. Circundei seu eixo diminuto e concebi a ideia de andar em linha reta a 2.369,33 km, até Paramaribo, a line made by walking, ou, ainda, de levar as siriemas em chamas e as línguas de fogo do Pantanal até Brasília, perto, a 878,48 km. E imaginei cruzar de novo a Puerta de la Ciudadela, em Montevideo, a 2.135 km, e descer à rambla, sei lá eu, talvez estivesse tomado por um andar sem labirintos e toda ideia de travessia acabasse no sem-número e no sem-lugar que são as chapadas.
Na outra manhã a sensação térmica foi a mesma, e saí ao sol, nas insolações, com as pernas pouco a pouco encarnadas pelo pó vermelho que subia a seco pela roupa, mas pegajoso, até que vi prédios abaixo – à primeira vista leves, como se acampassem – e decifrei o mar cerrado, no horizonte, por detrás da Aclimação ou da Terra Nova, uma espécie de Oceania – “o vazio é esperança” e, evidentemente, eu vi o que a tontura via.
Passou.
A uma distância segura – veículo leve de tração humana a sangue e a água –, evito o que não for respiração. Mas basta lavar de novo o rosto e volto ao sol salubre, no mar vermelho da Chapada dos Guimarães, a 2.015 km da cuba do banheiro.