Uma crônica de Guilherme Tauil
Guilherme Tauil (Taubaté, 1993) é mestrando em Literatura Brasileira (DLCV-USP) com trabalho sobre o cronista Antônio Maria, publicou Sobreviventes do verão e mantém o www.youtube.com/tauil .
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O cérebro da minha avó
Só fui entender que havia algo de grave com minha avó quando ela me preparou um sanduíche de queijo sem queijo. Antes do lapso lácteo que descaracterizou o tostex, especialidade incomparável da minha ascendente, eu achava graça em suas trapalhadas. Passou a botar em sua bolsa chaves e documentos que não eram seus, a se desentender com as regras do baralho, a tirar todos os dias a roupa de cama e a manifestar em toda oportunidade sua admiração por Walmor Chagas.
Mas quando me apresentaram a enfermeira que passaria a dormir com ela e me explicaram que eu não deveria me aborrecer se fosse chamado por outro nome, comecei a encarar suas travessuras com o olhar anuviado de quem testemunha uma senhorinha amorosa se transformar numa idosa acamada. O desmonte da minha avó foi uma ladeira árdua.
Certa vez, num churrasco, cercada por parentes e amigos, ela se aproximou de mim e perguntou baixinho quem era “essa gente feia”. Incapaz de responder que éramos nós, a sua gente, segurei seu braço manchado e comecei a rir uma risada que de início era quase muda, só com os olhos, e aos poucos foi pegando o ritmo até desembestar numa gargalhada, à qual ela se juntou e ficamos os dois ali, de braços segurados, nos olhando e rindo, rindo, rindo. E então percebi que já não tinha mais avó.
Restavam apenas o carinho comedido dos desconhecidos e as lembranças dos momentos bons, sobretudo das histórias que sabia de cor. Quando o colo de vó não era suficiente para me embalar no sono, ela sempre tinha uma fábula, uma narrativa fantástica que ia adaptando ao gosto de cada neto. Eu me pergunto até quando essas historinhas permaneceram arquivadas em sua memória, se foram se descolando aos pouquinhos, detalhe por detalhe, ou se ruíram de uma só vez em bloco, como iceberg, junto com o nome do seu primeiro amor, a receita de pudim e o endereço do filho mais velho.
O Alzheimer comeu sua memória. Levou embora metros e metros de lembranças, quilos de passado. Nada, ou quase nada, ficou intacto. Às vezes imagino o cérebro da minha avó como um salão cheio de gente dançando um bailinho de época que pouco a pouco foi perdendo o brilho. Primeiro cortaram a música, levaram as garrafas e começaram a tirar as mesas com os convidados ainda presentes. Depois recolheram a decoração, afastaram os casais e apagaram as luzes. Quem não foi embora ficou por lá, no escuro, desorientado. De vez em quando, os remanescentes se esbarravam e ensaiavam uma dança, mas que, em silêncio, não vingava. Despediam-se sem jeito e partiam um a um, até que sobrasse um único conviva a tatear o chão, certo de que encontraria alguma taça de champanhe morno, talvez um interruptor que trouxesse a luz de volta e recomeçasse a festa, mesmo que só para ele. Certo de que, em algum momento, entenderia o que estava acontecendo.
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(Fotografia de Bernardo Ceccantini)