Uma crônica de Luiz Renato Souza Pinto
Luiz Renato Souza Pinto lançou, em 1998, o romance Matrinchã do Teles Pires, que trata da colonização do norte do Mato Grosso ao longo dos anos setenta, durante a ditadura militar. Em 2014, veio Flor do ingá, desdobrando a aventura e apresentando o cotidiano de um casal que se conhece em Londrina, Paraná e vem para o Mato Grosso, quando então se separam. Em 2018, Xibio completa a trilogia, destacando a vinda de nordestinos para garimpos de diamante em Mato Grosso e Goiás. O autor também publicou Duplo sentido (crônicas), em 2016, em parceria com o pernambucano Carlos Barros e Gênero, número, graal (poemas) em 2017, ganhador do II Prêmio Mato Grosso de Literatura.
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Crítica, ficção, metaliteratura
“O legado de nossa miséria”, de Felipe Holloway, começa um tom acima. Acelerado. O livro se inicia com a expressão “No entanto, ele está sentado na cadeira alta de um bar, o pescoço endurecido, de modo que a cabeça não possa se desviar da posição em que ficou, quando a voz calculada para soar pesarosa comunicou a morte, no jornal” (HOLLOWAY, 2019, p. 9). Penso que a citação já se parece com um mini conto. Há um personagem (ele), um espaço (o bar), um tempo determinado (espécie de aqui e agora), um narrador (percebe-se observador – ao menos neste instante), embora não dê conta do que seria o enredo da história.
Quando digo que ouço como um tom acima, penso na musicalidade de um Stravisnky, por exemplo, associada a pensamentos de base niilista de ordem schopenhauriana. Gosto de pensar este livro como metaliteratura, o que não exime em nada da qualidade da carpintaria, pelo contrário. “A tentativa de aproximar a arte de descrever a miséria de gente real da de fazer a mesma coisa, só que com gente imaginária, vulgarmente eufemizada ‘jornalismo literário’, havia atingido em “A sangue frio” um nível de refinamento impossível de ombrear” (idem, p. 24-5). Capote!
A primeira parte é um fluxo pelo qual o registro da escrita passa pelo filtro de quem a produz, em que, (o narrador) muitas vezes, faz uso de uma linguagem empolada, vocabulário hermético que (certamente) afastaria muitos leitores desacostumados com esse tipo de leitura. Pareço ver uma mala de vastos conhecimentos aberta, na qual vocábulos feito fraturas expostas vão sendo empilhados, aguardando a oportunidade de terem seus segredos revelados. E a epifania tarda a se fazer presente.
Analogias são distribuídas, em meio a enumerações de várias ordens ao longo do texto. Espécies de progressões aritméticas e geométricas vão se interpondo, como se buscassem atingir a médio e longo prazo a compreensão do leitor. É uma prosa rígida, sob muitos aspectos. Mas de um hermetismo que não torna impossível o mergulho na construção sígnica. O heliotropismo sugerido, o prosaísmo apontado e o solipsismo que retroagem na figura do narrador para explicar as espirais semânticas vão retorcendo as camadas de significação.
Penso que há um contraponto interessante entre o que se narra e a recepcionista do hotel, em que o narrador chega para se hospedar. O ranço acadêmico em contraste com a comunicabilidade afável. Em algumas oportunidades percebo que o excesso de símiles proporciona um tom arrogante na construção do discurso do escriba. Seria ele portador de certa empáfia por trás do que me pareceu enfadonho? “Lidar com o ego de intelectuais era estar sempre na iminência de vê-los transformados em um ex-vingativo” (idem, p. 72).
Felipe dá tratamento sofisticado a algumas passagens bem humoradas. “Congressos sobre unaminidades literárias não são congressos, são igrejas” (idem, p. 77). E essa sagacidade reflete o narrador por dentro de seu próprio discurso, já que “certas metáforas às vezes ficam maiores do que suas próprias contradições, e recorrer a outras não tem o mesmo impacto. Falando do círculo de hipocrisia, talvez eu seja o maior representante dele” (idem, 78).
O congresso com senhas distribuídas de maneira limitada joga um dos participantes no bar, para acompanhar no telão a palestra do escritor e aqui vejo uma divisão sistêmica com impacto no ordenamento da narrativa. O bar como interposto, um lugar que pode ser um não lugar, mediado pelo telão, que seria outro que não o local da palestra, espécie de intermeio. De um lado um crítico e do outro o escritor, espelhados como duplos na mesa do bar, foco de quem ouve e vê, e do salão, espaço de quem fala. Egos divididos pela tela plana.
A segunda parte é o espaço dialogado com a figura de Borges. Com a narrativa de Jorge Luis. Aqui, uma espécie de cegueira, a la Saramago emerge sub-repticiamente na escrita. O papel do livro me faz lembrar de “Farenheit 451”; há uma Devoração da escrita enquanto construto histórico, não meramente registro factual. Seria uma variação para a crítica da cultura? Há necessidade do desbaste, tanto na ficção, como na crítica. E Edgar Alan Poe sempre soube disso. Pareço assistir a um jogo de gato e rato com uma barata a observar (Kafka e a melancolia). Seria uma variação da crítica da filosofia e reflexões acerca de literatura de botequim?
Em determinado momento há referência explícita ao espaço do diálogo: “Povo chucro. Isso, senta aí. Vou lá pegar outra garrafa” (idem, p. 146). Todo escritor tem sua gaveta, espécie de pandora, a proteger os escritos. “Toda vez que lhe indicava as medidas de um texto, era como se lhe propusesse um problema aritmético, que o criado-mudo, então, se encarregava de resolver, fornecendo a resposta logo que o sol nascia” (idem, p. 158).
O texto da orelha, escrito por Julián Fuks, e o fragmento da contracapa, assinado por Veronica Stigger, dão tom (também acima) na indicação da obra. O Prêmio SESC de Literatura, na categoria romance foi para Felipe Holloway, cearense radicado em Cuiabá, que agora entra para o clube de autores publicados por uma grande editora. O Brasil ganha mais um autor que tem muito a dizer.
REFERÊNCIA
HOLLOWAY, Felipe. O legado de nossa miséria. Rio de Janeiro: Record, 2019.